domingo, 14 de dezembro de 2008


RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO

José Aristides da Silva Gamito

1. Introdução
Quando se discute a relação entre ciência e religião, a saída mais sensata é a definição de papéis. No século XVI, Galileu Galilei (1564-1642) já chamava a atenção para esta diferença: “à ciência cabe dizer como vai o céu, e à religião como se vai ao céu”. A dificuldade de se separar a função da ciência e da função da religião foi a causa de muitas polêmicas no início da era moderna, quando a ciência começou a se definir como a entendemos hoje. Galileu foi pressionado a se retratar diante do tribunal da Inquisição, dizendo que era falsa a idéia de que a Terra girava em torno do seu eixo e em torno do sol.
Com a modernidade, a ciência desenvolveu métodos próprios de investigação e se tornou laica, isto é, independente da religião. Mas este processo foi lento e até hoje muitas pessoas ainda têm dificuldade em conciliar ciência e fé. Augusto Comte (1798-1856) defendia que o conhecimento humano passa por três estágios: o religioso, o filosófico e o científico. Na época religiosa, o homem explica os fenômenos recorrendo a causas sobrenaturais; na época filosófica, explica recorrendo a princípios racionais; na época científica, explica por meio das leis naturais, as quais explicam por si só os fenômenos. Porém, na prática as pessoas continuam vivendo esses estágios de maneira desigual.

2. As Religiões e a Ciência


As três grandes religiões do planeta, judaísmo, cristianismo e islamismo, passaram por resistência à ciência, mas seus segmentos mais esclarecidos atualmente aceitam as explicações da ciência e separam textos sagrados e teorias científicas. Os mulçumanos tiveram bons matemáticos e filósofos como Avicena e Averróis; os judeus nos deram nada menos que Albert Einstein, os cristãos nos deram Mendel, Hegel etc. Muitos homens de fé estudaram ciência sem criar conflitos.
No século XIX, até a Bíblia passou a ser lida cientificamente. Os pastores alemães Karl Bath, Paul Tilich e Rudolf Bultmann desenvolveram métodos para uma leitura crítica da Bíblia. A partir deste período os teólogos passaram a seguir semelhante visão. No século XX, a relação melhorou ainda, o arqueólogo jesuíta Teilhard de Chardin conciliou cristianismo e teoria da evolução. Na década de 90, muitos cientistas cristãos defendem a teoria do Design Inteligente.

3. A unidade da questão e a pluralidade das repostas


A: Cristianismo/Bíblia – “No princípio criou Deus o céu e a terra”. Gn 1,1.
B: Islamismo/Corão – “Ele foi que criou tudo quanto existe na terra; e então, dirigiu sua vontade até o firmamento do qual fez ordenadamente, sete céus, porque é onisciente”. 2,29.
C: Hinduísmo/Bhagavad Gita – “No início da criação o Pai de todos os seres enviou muitas gerações de homens...” Canto III, 10.
D: Taoísmo/ Tao Te Ching – “O tao gera o um/o um gera o dois/ o dois gera o três/ o três gera as dez mil coisas”. 42.
A: Criacionismo – Deus criou o mundo e o primeiro homem.
B: Evolucionismo – A vida é resultado do acaso e das sucessivas transformações da matéria.
C: Design Inteligente – A vida surge de Deus de modo indireto. Deus dotou a matéria de capacidade de modelar e deu impulso à evolução.


4. Definição de Papéis


O ser humano é dado a exageros. Na Idade Média, a fé era considerada superior à razão (a verdade estava com a religião), na Idade Moderna, a ciência passou a ser considerada superior à religião, muitos cientistas se tornaram ateus (a verdade estava com a ciência), atualmente, é mais aceito que fé e religião são conhecimentos complementares do mundo (a verdade está com as duas).
Antes de qualquer debate que compare religião e ciência, é sensato observar. A ciência e a religião são duas formas de o homem se relacionar com o mundo. São duas maneiras de responder às suas indagações internas. Elas são complementares e não opostas. Seus papéis não podem ser tomados um pelo outro devido a diferença da natureza do conhecimento que há entre as duas. A religião é um conhecimento simbólico-místico, explica o mundo através de causas sobrenaturais. A ciência é um conhecimento racional-empírico, explica o mundo através das leis da natureza e da experiência. São duas respostas válidas. A religião deve se ocupar de questões relativas à fé ( “como se vai ao céu”) e a ciência da explicação da natureza e de seus fenômenos (“como vai o céu”).

5. Definição de método


Na era contemporânea, a partir dos avanços dos conhecimentos do homem a verdade passou a ser histórica e situacional, portanto, relativa. Não existe verdade, existem discursos com sentido. O homem possui questões básicas de sua existência e para cada época e lugar há diferentes respostas. Para a origem da vida: na Antigüidade, a religião deu uma resposta baseada na experiência da época e do lugar. Por exemplo, a Bíblia diz Elohim criou o céu e a terra e organizou tudo. Os filósofos defenderam a geração espontânea. A ciência a liga a determinadas reações químicas ocorridas na matéria. São todas respostas do mesmo homem para seu antigo problema da sede do saber. São todas respostas válidas em suas épocas e situações, uma não pode se impor à outra. A reposta do Gênesis não é científica, é poética. A resposta da ciência não é poética e nem mítica, é experimental.

6. Indicações para um paralelo entre o Gênesis e a ciência

A Bíblia e a ciência não são opostas. Mas ao traçar um paralelo entre os dois é necessário definir papéis e métodos. Respeitar a natureza, intenção e função de cada ponto de vista e não querer sobrepor um ao outro. Preliminares que preparam o paralelo: dados históricos, época, lugar, autor, gênero.
Criação: o Gênesis 1 não é tratado de ciência, não é uma dissertação, é um poema do século XVI a. C., na época do Exílio na Babilônica escrito por sacerdotes israelitas. A intenção do autor é: afirmar a existência de um único Deus (1), a natureza não é divina e nem povoada de deuses (2), o ponto central é o homem (3), o ritmo da vida é trabalho e descanso. Trata-se de uma polêmica com a religião cananéia. A fonte do autor é a tradição oral: existiam vários mitos na época que explicavam a origem do mundo e da vida. Conhecimento simbólico-místico.
Ciência: tratado científico baseado na hipótese racional e na experimentação, do século XX, cientistas ingleses, russos e estadunidenses. A intenção é explicar a origem do universo, da Terra e da vida. Conhecimento racional-empírico.


7. Aproximação entre Gênesis e ciência

A ciência e a religião não são opostas. As duas respostas sobre os problemas humanos são válidas e complementares. Porém, é necessário observar alguns critérios para comparar essas visões de mundo. São relativamente comparáveis. Existem semelhanças e diferenças, mas são visões de mundo totalmente distintas. De modo absoluto, são incomparáveis.

GÊNESIS / CIÊNCIA

Conhecimento simbólico-místico
Conhecimento racional-empírico

Poema israelita do século XVI a. c.
Teoria científica do século XX

Descrição baseada na tradição oral e imaginação
Descrição baseada na experiência, no cálculo e nas evidências

A idéia principal é a criação
A idéia principal é a evolução

O agente da origem é Elohim (Deus)
Não existe um agente (apenas acaso)

“No princípio, Deus criou o céu e a terra”
No princípio, houve uma aceleração de partículas e um aquecimento

Big Cry (Grande Grito)
Big Bang (Grande Explosão)

“Deus disse: ‘Haja luz’”
Houve uma grande explosão
A terra estava vazia e vaga
O universo estava desorganizado
Criação feita em etapas/uma semana
Evolução por etapas/milhares de anos
Idade do mundo para os judeus: 5768 anos
Idade do universo/explosão: 13,7 bilhões de anos
A medida baseada em cálculo da tradição
A medida é baseada no trajeto da luz
Universo estático/imutável
Universo em expansão
Criação de tudo em 7 dias
Evolução em 5 eras geológicas (3 bilhões de anos)
“Deus conclui a obra e descansou...”
A evolução e a expansão do universo não param
Primeiras vidas: criação dos vegetais completos e de toda espécie (no terceiro dia)
Surgimento das células eucariontes a 1 bilhão de ano
Última criação: fez o homem do barro (no sexto dia)
Surge o homem a 100.000 anos.

Desde o século XVI, a ciência e a religião foram definindo seus papéis. A Bíblia não é livro de tratados científicos, é relato da experiência de fé do povo judeu. A ciência não é credenciada para falar de Deus e critérios de salvação. As duas dão respostas ao ser humano que é multidimensional (tem necessidade de ciência e de fé). Hoje, não se pode falar de verdade absoluta. O mundo é plural e temos de respeitar as respostas de todos. A verdade se constrói juntos através do diálogo. Para fazer ciência é preciso se despir de preconceito e pensar como cientista. Para ler a Bíblia é necessário ter fé e usar os instrumentos de interpretação (o auxílio divino e as ciências humanas). O fundamentalismo religioso é fruto de uma leitura superficial da Bíblia. A opção é pessoal, cada escolha sua visão de mundo de modo sensato e respeitando as visões dos outros, nisto consistem a ética das religiões e a ética da ciência.