segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Ética e relativismo

            O IMPERATIVO ÉTICO E AS PRIORIDADES AXIOLÓGICAS

José Aristides da Silva Gamito[1]
Resumo
Proposta de definição de um minimum ético para estabelecer o discurso democrático dentro de uma sociedade plural e relativista. A ética é fundamentada pela intangibilidade da vida e a partir desse princípio pela demarcação de prioridades morais.

Palavras-chave: Ética, pluralidade, relativismo, minimum moral.

1.  Introdução
            Ao longo das minhas reflexões sobre ética sempre me questionei sobre que proposições podem ser afirmadas como universalmente verdadeiras e válidas diante de tanto relativismo gnosiológico e moral. Mesmo que alguém esvaziasse toda universalidade metafísica, gnosiológica e moral, nós precisaríamos defender um minimum dogmático para fundamentar esse discurso. Dentre todos os campos da filosofia, o único que sobreviveria a todo relativismo considero ser a ética.
            Portanto, todo discurso precisa de fundamento para se constituir, seja ele relativista ou não. Descartes afirma como certeza fundamental da razão a existência. Portanto, a verdade mínima a que posso reduzir toda minha dúvida é o fato de existir. O sum cartesiano poderia soar como vivo na perspectiva da nossa reflexão. Mas já o cogito precisaria abranger o pensamento, o sentido e impulsos de vida.

2.  As fundamentações do imperativo ético

            Se todas as verdades são relativas o que me assegurará o direito de afirmar tal proposição? Em última instância, e como instância fundadora, o fato de eu estar vivo. A vida é condição ontológica e o direito de se expressar como vivente o ponto de partida para todo discurso ético. Se imaginarmos uma sociedade plural, relativista, porém, intolerante, perceberemos como será difícil propor um discurso democrático, considerando a pluralidade, sem estabelecer um fundamento que sustente determinada proposta ética.
            Portanto, o vivo é a condição fundadora da ética. Do seu núcleo surge um imperativo ético que sustenta todo discurso social e filosófico: “Não matarás”. Esse imperativo é um dogma, aliás, o único dogma, porque deve sobreviver a qualquer desmoronamento de valores de propostas morais. A afirmação nos lembra a tradição do decálogo bíblico (“Non occides”), porém, a proposta nossa é totalmente laica.
Esse ‘não matarás’ pode representar a morte física de fato, empírica, mas também a morte no sentido conceitual, quando há a abstração, a mera conceituação e abstração do outro a um protocolo, número ou planilha burocrática, como normalmente os sistemas de ensino encaram. Assim o rosto como olhar, assume a dimensão de apenas um número de matrícula ou um nome na lista de chamada, ou como no caso do professor alguém que precisa ser suportado, por dominar determinada área do conhecimento. A abstração e burocratização do olhar do outro é um tipo grave de morte que inviabiliza a verdadeira educação entre sujeitos (RODRIGUES, 2012, p.67).

            A expressão “não matarás” inclui um conjunto de privações ao ser vivente, que vai desde provocar sofrimento, causar dor até a aniquilação total da vida. É uma ética trans-humana. Envolve todos os seres vivos, e mais, inclui toda a ambiência que é o reino da vida. Portanto, “não matarás” significa não causar nenhum tipo de dor, sofrimento ou privação da possibilidade de viver porque aquele que vive precisa estar em condição de debater, dar razões de sua condição de vivente. Vencer pelo assassinato é uma covardia moral que rebaixar o ator daquela ação.
            Portanto, viver é o dogma fundante de todo discurso e ele é anunciado pelo imperativo ético “não matarás”. Sem essa condição fundamental não existe qualquer discurso sobre valores morais, diante de toda arbitrariedade e intolerância é necessário permitir pelo menos viver, antes de dar as razões sobre qualquer posicionamento ou qualquer ação.
           
3.  A condição de vivente e de proponente do homem

            A partir da condição ontológico-ética do vivo, podemos falar de duas características do homem, ele é res vivens e res proponens (em analogia à filosofia cartesiana). A sua condição fundamental é viver, em sentido pleno, e poder se comunicar, dizer, propor considerações sobre o mundo. Toda a sua atividade na história foi propor cultura, simbolismo, normas, discursos, modelos de sociedade. Ele propõe enquanto constrói o mundo, desenvolve tecnologias (ações) e propõe enquanto pensa, cria discursos, atribui valores ao mundo (reflexões).

E citando Etienne Féron, “o Dizer é a instância original em que se tece a comunicação”. Dizer é sentir-se humano. É constituir-se como uma passividade expositiva, como vulnerabilidade e não como casulo. Essa humanização está na capacidade de sentir o humano no Outro e perceber a capacidade “ser-para-o-outro” e não ser um ser para si mesmo. Assim a visage é um apelo que diz e por isso reintegra e reafirma a sua condição de humano ao suplicar o “não matarás” (RODRIGUES, 2012, p.69).

            Podemos dar mais um passo no sentido de uma ética mínima. Seus valores inegociáveis precisam ser pelo menos: Estar vivo e poder se expressar. Isso constitui o núcleo do imperativo ético.

4.  As prioridades éticas

            O homem como proponente cria uma variedade de valores. E cada pessoa segundo sua inteligência, aptidão e interesse se ocupa de alguma atividade ou área do saber, chegamos a um momento que estamos fragmentados, desconectados. Mas socialmente temos vínculos, interferências múltiplas.
            O mundo contemporâneo, múltiplo, complexo e veloz, se depara com algumas contradições morais. A desigualdade social, a fome, o terrorismo, o tráfico de droga são esquecidos e postos em segundo plano. Bilhões são investidos no entretenimento e conforto de uma minoria, sendo que há maioria que não tem acesso nem ao básico para sobreviver e se expressar.
            Portanto, o que propomos é que se o fundamento da ética é a condição de vivente, é prioridade moral todo valor em torno da preservação e da otimização da vida. Os investimentos em mídia, lazer, moda, entretenimento, construções e meios de transportes luxuosos só deveriam existir quando tivéssemos garantido as necessidades básicas.
            Primeiro, eu preciso assegurar a vida, ter alimento, saúde. Depois de eu manter as necessidades básicas de sobrevivência de todos é que eu estou autorizado eticamente a invistir nas estruturas de bem-estar, lazer, arte, entretenimento. Porém, nenhum projeto moderno foi capaz de institucionalizar a igualdade econômica e social porque as ações são realizadas de modo isolado e, além disso, não há consenso sobre prioridades éticas. O que predomina é a prioridade de interesses.

5.  A importância da demarcação de um mínimo ético e de prioridades morais

            O ser humano portador da condição sagrada de vivente corre o risco de ser tragado e convertido em mera abstração dentro da multivocidade dos discursos que propõem verdades. Muitos sistemas de valores nascem do capricho de um determinado indivíduo e ganham grandes proporções porque se mistificam e tomam o status de irrenunciável. Por exemplo, colecionar figurinhas pode passar de um hobby para se tornar uma experiência que invade todos os campos da vida de um indivíduo.
            Assim nos perdemos nessa variedade de discursos e de propostas de “vida boa” e não adotamos critérios para selecionar prioridades. O que é prioridade, ver meu filme preferido ou socorrer pessoas atingidas por barragens? Por ataques terroristas? A noção de prioridade ética evoca a dimensão social do homem, supera seu individualismo.
            Os discursos sugam a atenção e o tempo de vida do homem. As religiões, as filosofias, as produções artísticas e tantas outras atividades tornam o mundo mágico e desconsideram o sofrimento que pede justiça. Por outro lado, ao definir prioridades éticas é necessário trabalhar a comunicação, o diálogo racional dentro do espaço democrático para evitar que pseudo-prioridades agridam mais uma vez a individualidade. Convocar indivíduos em prol de uma causa social não significa instrumentalizá-los e destruir suas individualidades.
            O risco de perder o foco no momento de selecionar as prioridades éticas é grande e constante. O homem tem uma tendência em institucionalizar as suas idéias de estimação, cria entidades, teorias, normas, tendência. Portanto, o “não matarás” é princípio dogmático que orienta todo o processo.

6.  Considerações finais

     Em suma, o imperativo ético determina que as ações individuais e sociais são pautadas num discurso considerado consensualmente como verdadeiro. O “não matarás” é a primeira verdade ética e o princípio fundador de toda a ética. As suas raízes estão na ontologia: O homem é um ser vivente e sem a condição de vivente não possível propor qualquer filosofia ou saber.
     Como vivemos bombardeados de propostas éticas, precisamos selecionar nossas ações a partir do dogma da intangibilidade vital. Toda ação tanto na esfera individual ou do Estado precisa seguir prioridades. O critério das prioridades é investir primeiro em ações que asseguram a vida.
     A saciedade das necessidades biológicas e materiais estão em primeiro lugar. Nesse sentido, a fome e a miséria no mundo constituem um escândalo ético. Enquanto alguns esbanjam na vida luxuosa, outros não têm acesso às condições básicas de sobrevivência.
  

REFERÊNCIAS
RODRIGUES, Ricardo Antônio. O rosto do outro é letra. In: Revista Litteris, nº 10, setembro de 2012.

LÉVINAS, Emanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993.
           



[1] Professor de Filosofia no Seminário Diocesano Nossa Senhora do Rosário / ITEOFIC e no Instituto de Ciências Humanas João Paulo II (IJOPA), Caratinga (MG), Secretário Municipal da Educação de Conceição de Ipanema – MG. E-mail: joaristides@gmail.com.