O IMPERATIVO ÉTICO E AS PRIORIDADES AXIOLÓGICAS
José Aristides da Silva Gamito[1]
Resumo
Proposta de definição de um minimum ético para estabelecer o
discurso democrático dentro de uma sociedade plural e relativista. A ética é
fundamentada pela intangibilidade da vida e a partir desse princípio pela demarcação
de prioridades morais.
Palavras-chave:
Ética, pluralidade, relativismo, minimum
moral.
1. Introdução
Ao
longo das minhas reflexões sobre ética sempre me questionei sobre que
proposições podem ser afirmadas como universalmente verdadeiras e válidas
diante de tanto relativismo gnosiológico e moral. Mesmo que alguém esvaziasse
toda universalidade metafísica, gnosiológica e moral, nós precisaríamos
defender um minimum dogmático para
fundamentar esse discurso. Dentre todos os campos da filosofia, o único que
sobreviveria a todo relativismo considero ser a ética.
Portanto,
todo discurso precisa de fundamento para se constituir, seja ele relativista ou
não. Descartes afirma como certeza fundamental da razão a existência. Portanto,
a verdade mínima a que posso reduzir toda minha dúvida é o fato de existir. O sum cartesiano poderia soar como vivo na perspectiva da nossa reflexão.
Mas já o cogito precisaria abranger o
pensamento, o sentido e impulsos de vida.
2. As fundamentações do imperativo ético
Se
todas as verdades são relativas o que me assegurará o direito de afirmar tal
proposição? Em última instância, e como instância fundadora, o fato de eu estar
vivo. A vida é condição ontológica e o direito de se expressar como vivente o
ponto de partida para todo discurso ético. Se imaginarmos uma sociedade plural,
relativista, porém, intolerante, perceberemos como será difícil propor um
discurso democrático, considerando a pluralidade, sem estabelecer um fundamento
que sustente determinada proposta ética.
Portanto,
o vivo é a condição fundadora da
ética. Do seu núcleo surge um imperativo ético que sustenta todo discurso
social e filosófico: “Não matarás”. Esse imperativo é um dogma, aliás, o único dogma,
porque deve sobreviver a qualquer desmoronamento de valores de propostas
morais. A afirmação nos lembra a tradição do decálogo bíblico (“Non occides”),
porém, a proposta nossa é totalmente laica.
Esse ‘não matarás’
pode representar a morte física de fato, empírica, mas também a morte no
sentido conceitual, quando há a abstração, a mera conceituação e abstração do
outro a um protocolo, número ou planilha burocrática, como normalmente os
sistemas de ensino encaram. Assim o rosto como olhar, assume a dimensão de
apenas um número de matrícula ou um nome na lista de chamada, ou como no caso
do professor alguém que precisa ser suportado, por dominar determinada área do
conhecimento. A abstração e burocratização do olhar do outro é um tipo grave de
morte que inviabiliza a verdadeira educação entre sujeitos (RODRIGUES, 2012,
p.67).
A
expressão “não matarás” inclui um conjunto de privações ao ser vivente, que vai
desde provocar sofrimento, causar dor até a aniquilação total da vida. É uma
ética trans-humana. Envolve todos os seres vivos, e mais, inclui toda a
ambiência que é o reino da vida. Portanto, “não matarás” significa não causar
nenhum tipo de dor, sofrimento ou privação da possibilidade de viver porque
aquele que vive precisa estar em condição de debater, dar razões de sua
condição de vivente. Vencer pelo assassinato é uma covardia moral que rebaixar
o ator daquela ação.
Portanto,
viver é o dogma fundante de todo discurso e ele é anunciado pelo imperativo
ético “não matarás”. Sem essa condição fundamental não existe qualquer discurso
sobre valores morais, diante de toda arbitrariedade e intolerância é necessário
permitir pelo menos viver, antes de dar as razões sobre qualquer posicionamento
ou qualquer ação.
3. A condição de vivente e de proponente do
homem
A
partir da condição ontológico-ética do vivo,
podemos falar de duas características do homem, ele é res vivens e res proponens
(em analogia à filosofia cartesiana). A sua condição fundamental é viver, em
sentido pleno, e poder se comunicar, dizer, propor considerações sobre o mundo.
Toda a sua atividade na história foi propor cultura, simbolismo, normas,
discursos, modelos de sociedade. Ele propõe enquanto constrói o mundo,
desenvolve tecnologias (ações) e propõe enquanto pensa, cria discursos, atribui
valores ao mundo (reflexões).
E
citando Etienne Féron, “o Dizer é a instância original em que se tece a
comunicação”. Dizer é sentir-se humano. É constituir-se como uma passividade
expositiva, como vulnerabilidade e não como casulo. Essa humanização está na
capacidade de sentir o humano no Outro e perceber a capacidade
“ser-para-o-outro” e não ser um ser para si mesmo. Assim a visage é um apelo
que diz e por isso reintegra e reafirma a sua condição de humano ao suplicar o
“não matarás” (RODRIGUES, 2012, p.69).
Podemos
dar mais um passo no sentido de uma ética mínima. Seus valores inegociáveis
precisam ser pelo menos: Estar vivo e poder se expressar. Isso constitui o
núcleo do imperativo ético.
4. As prioridades éticas
O
homem como proponente cria uma variedade de valores. E cada pessoa segundo sua
inteligência, aptidão e interesse se ocupa de alguma atividade ou área do
saber, chegamos a um momento que estamos fragmentados, desconectados. Mas
socialmente temos vínculos, interferências múltiplas.
O
mundo contemporâneo, múltiplo, complexo e veloz, se depara com algumas
contradições morais. A desigualdade social, a fome, o terrorismo, o tráfico de
droga são esquecidos e postos em segundo plano. Bilhões são investidos no
entretenimento e conforto de uma minoria, sendo que há maioria que não tem
acesso nem ao básico para sobreviver e se expressar.
Portanto,
o que propomos é que se o fundamento da ética é a condição de vivente, é
prioridade moral todo valor em torno da preservação e da otimização da vida. Os
investimentos em mídia, lazer, moda, entretenimento, construções e meios de transportes
luxuosos só deveriam existir quando tivéssemos garantido as necessidades
básicas.
Primeiro,
eu preciso assegurar a vida, ter alimento, saúde. Depois de eu manter as
necessidades básicas de sobrevivência de todos é que eu estou autorizado
eticamente a invistir nas estruturas de bem-estar, lazer, arte, entretenimento.
Porém, nenhum projeto moderno foi capaz de institucionalizar a igualdade
econômica e social porque as ações são realizadas de modo isolado e, além
disso, não há consenso sobre prioridades éticas. O que predomina é a prioridade
de interesses.
5. A importância da demarcação de um mínimo
ético e de prioridades morais
O
ser humano portador da condição sagrada de vivente corre o risco de ser tragado
e convertido em mera abstração dentro da multivocidade dos discursos que
propõem verdades. Muitos sistemas de valores nascem do capricho de um
determinado indivíduo e ganham grandes proporções porque se mistificam e tomam
o status de irrenunciável. Por
exemplo, colecionar figurinhas pode passar de um hobby para se tornar uma experiência
que invade todos os campos da vida de um indivíduo.
Assim
nos perdemos nessa variedade de discursos e de propostas de “vida boa” e não
adotamos critérios para selecionar prioridades. O que é prioridade, ver meu filme
preferido ou socorrer pessoas atingidas por barragens? Por ataques terroristas?
A noção de prioridade ética evoca a dimensão social do homem, supera seu
individualismo.
Os
discursos sugam a atenção e o tempo de vida do homem. As religiões, as
filosofias, as produções artísticas e tantas outras atividades tornam o mundo
mágico e desconsideram o sofrimento que pede justiça. Por outro lado, ao
definir prioridades éticas é necessário trabalhar a comunicação, o diálogo
racional dentro do espaço democrático para evitar que pseudo-prioridades
agridam mais uma vez a individualidade. Convocar indivíduos em prol de uma
causa social não significa instrumentalizá-los e destruir suas
individualidades.
O
risco de perder o foco no momento de selecionar as prioridades éticas é grande
e constante. O homem tem uma tendência em institucionalizar as suas idéias de estimação,
cria entidades, teorias, normas, tendência. Portanto, o “não matarás” é
princípio dogmático que orienta todo o processo.
6. Considerações finais
Em suma, o imperativo ético determina que
as ações individuais e sociais são pautadas num discurso considerado consensualmente
como verdadeiro. O “não matarás” é a primeira verdade ética e o princípio
fundador de toda a ética. As suas raízes estão na ontologia: O homem é um ser
vivente e sem a condição de vivente não possível propor qualquer filosofia ou
saber.
Como vivemos bombardeados de propostas
éticas, precisamos selecionar nossas ações a partir do dogma da intangibilidade
vital. Toda ação tanto na esfera individual ou do Estado precisa seguir
prioridades. O critério das prioridades é investir primeiro em ações que
asseguram a vida.
A saciedade das necessidades biológicas e
materiais estão em primeiro lugar. Nesse sentido, a fome e a miséria no mundo
constituem um escândalo ético. Enquanto alguns esbanjam na vida luxuosa, outros
não têm acesso às condições básicas de sobrevivência.
REFERÊNCIAS
RODRIGUES,
Ricardo Antônio. O rosto do outro é
letra. In: Revista Litteris, nº 10, setembro de 2012.
LÉVINAS,
Emanuel. Humanismo do outro homem.
Petrópolis: Vozes, 1993.
[1] Professor
de Filosofia no Seminário Diocesano Nossa Senhora do Rosário / ITEOFIC e no
Instituto de Ciências Humanas João Paulo II (IJOPA), Caratinga (MG), Secretário
Municipal da Educação de Conceição de Ipanema – MG. E-mail: joaristides@gmail.com.
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