terça-feira, 24 de março de 2020

Deus está punindo a humanidade?


AS PANDEMIAS E O PROBLEMA DO MAL

José Aristides da Silva Gamito[1]

1.    Introdução

Estamos no início de 2020. Uma pandemia assola o mundo. Todos nós estamos apreensivos por sabermos que muitos estão infectados, sofrendo e morrendo. A cada dia o vírus SARS-COV-2 infecta mais pessoas. Diante de tantas notícias nos meios de comunicação, acabamos querendo saber as razões de tanto sofrimento. Diferentes pessoas propõem suas explicações. Existem algumas científicas, filosóficas e outras apocalípticas. Entendemos que diante do sofrimento as pessoas buscam respostas em muitos lugares. As Escrituras são a principal fonte de referência quando se trata de explicar a razão do mal. A partir daí esperamos uma relação entre Deus e o que está acontecendo.
No Antigo Testamento, as epidemias, guerras e fomes eram atribuídas à intervenção divina. Estes textos estão repletos de exemplos de catástrofes e de tragédias. E muitas vezes, as pessoas procuram explicação nestes textos porque elas se identificam com situações semelhantes. Até aí está tudo bem. Porém, quando o fundamentalismo religioso entra em ação, as pessoas de fé começam a interpretar tragédias atuais como eram interpretadas no antigo Israel. Com isso, começam a pregar situações apocalípticas e apontar teorias para a intervenção divina. Nestas situações, Deus aparece punindo toda a humanidade, incluindo culpados e inocentes, por causa de um comportamento blasfemo localizado.

2.    O tratamento da misericórdia e da justiça nos dois testamentos

Se você rolar as páginas das principais redes sociais, encontrará um tratamento apocalíptico para a pandemia de coronavírus. Todas estas interpretações podem ser resumidas dentro do problema do mal. Esta é uma expressão teológica ou da teodiceia. O problema do mal é uma tentativa de explicar a correlação entre a existência de um Deus bom e a existência do mal no mundo. É um problema para o qual filósofos e teólogos procuram dar diferentes respostas. Existem algumas até convincentes, mas nenhuma resolve totalmente a questão. Mas não é minha intenção discutira a fundo teodiceia neste texto.
As explicações mais comuns são as de que Deus está punindo a humanidade. Alguns internautas até sabem porque ele está punindo as pessoas com o coronavírus. Alguns exemplos: Algumas representações do Carnaval brasileiro nos últimos anos blasfemaram contra Deus. Uma pessoa transexual se vestiu de Jesus. Um grupo fez um filme insinuando que Jesus era homoafetivo. São reivindicadas punições para pecados, geralmente, de cunho sexual. Normalmente, corrupção política, desigualdade social etc não atraem punição divina no conceito destas pessoas. Parece que este Deus punitivo está preocupado só com sexualidade.
Portanto, a questão que se levanta é: Deus está punindo a humanidade com o coronavírus? Primeiramente, basta você tomar alguns trechos do Antigo Testamento que encontrará analogias para responder positivamente esta pergunta. Os fundamentalistas preferem estes textos que tratam da ira divina: dilúvio, o cativeiro do povo hebreu, as guerras contra Israel. Os antigos hebreus entendiam Deus de um modo antropomórfico e consideravam que a história era dirigida pela vontade divina. Se os israelitas conservassem a aliança com Deus tinha paz, mas se a quebrassem eram punidos com guerras, fomes e doenças. O conceito antropomórfico de Deus é aquela concepção que atribui sentimentos e emoções humanas a Deus.
No Novo Testamento, temos uma situação diferente. Se você ler os textos apocalípticos, dará um tratamento muito parecido para a questão. Eles não diferem muito da antiga concepção judaica da relação entre Deus e a humanidade. O Apocalipse está cheio de exemplos disso.  Mas se colocarmos este problema do mal na mentalidade de Jesus, qual seria a solução? As pessoas que fazem uma leitura fundamentalista da Bíblia defendem que Deus pune a humanidade porque é justo. A justiça no Antigo Testamento está vinculada à ira de Deus. Porém, nos evangelhos este conceito muda. A dificuldade do fundamentalista é estabelecer conexões entre estes textos. Ele não permite o uso da racionalidade para a interpretação bíblica. Portanto, aviso desde já que este meu texto não comunica com fundamentalistas.
Por que mudar este tratamento sobre o pecado e a justiça? Porque Jesus faz esta mudança. E ele é o intérprete por excelência das Escrituras. Esta deveria ser a máxima do cristão que lê a Bíblia. Porém, muitas vezes o leitor fundamentalista sobrepõe sua vontade ao texto. Apesar de Jesus dizer que não veio mudar a Lei, ele acaba operando uma mudança radical em sua compreensão: “Não penseis que eu vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17). Vide o tratamento que ele dá aos mandamentos depois desta afirmação (Mt 5, 21-48). Todo este comentário à Lei é introduzido pela antítese: “Ouvistes o que foi dito aos antigos... Eu, porém, vos digo” (Mt 5, 21-22). Aí está a chave hermenêutica do Antigo Testamento na ótica de Jesus.
Nos evangelhos, Jesus fala de misericórdia, mas também de justiça. A sua justiça tem o sentido de cumprimento da Lei além do dever. Mas ela não tem conotação de vingança como o conceito de “ira divina”. A respeito da relação com o próximo, ele pede para não xingá-lo, não matá-lo e tratar o inimigo com amor (Mt 5, 21-47). Neste sentido, quem cumpre a justiça da Lei, perdoa a todos os inimigos e ora por eles. É nesta contradição que reside a perfeição de Deus (Mt 5,48). Portanto, o conceito de divindade de Jesus ultrapassa os sentimentos e as emoções humanas.
O Deus de Jesus faz os fenômenos da natureza beneficiarem bons e maus, justos e injustos (Mt 5, 45). Ele alimenta os animais e ornamenta os vegetais (Mt 6, 25-34). Ele não é mau. Se seus filhos o pedem alguma coisa boa, ele não dará algo ruim em seu lugar (Mt 7, 7-11). Neste sentido, a vingança não faz parte da ação divina. Em Mt 25, você encontrará um texto que fala de punição individual segundo as ações de cada um. E todas elas estão relacionadas com a solidariedade com o próximo (Mt 25, 31-46). Um Deus bom não significa um Deus que aprova o pecado e a injustiça. Mas é um Deus que pensa como Deus e não como homem. Ele se compadece e ultrapassa o sentimento humano. Um autor mesmo do Antigo Testamento já reconhece que o antropomorfismo não é uma representação perfeita de Deus: “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos” (Is 55,8).
A confusão entre vingança e justiça é um grave pecado contra o mandamento: “Não pronunciarás em falso o nome de Iahweh teu Deus” (Ex 20,7). Se blasfemar através da arte é um pecado, mais blasfêmia ainda é dizer que Deus é mau, vingativo e que pune os inocentes. Portanto, o problema maior é pensar que por causa do comportamento de um grupo x toda a humanidade será punida, incluindo, as crianças inocentes e os idosos indefesos. O fundamentalismo carece de lógica, de bom senso e de senso mesmo de justiça. A sua justiça é totalmente desproporcional. O fundamentalista está preocupado em colecionar versículos que provem a vingança de Deus e chama-a de justiça. Ele tem dificuldade em aceitar que Deus é bom. Se alguém o critica, ele diz que está com a verdade da Bíblia, ou seja, a posição de versículos avulsos.
O fundamentalista torce a realidade para caber na sua cólera. Ele sempre dirá que os que morreram de coronavírus eram pecadores. Aqueles que se salvaram é porque tinham fé. Ele é o centro dos fenômenos e deveria como cristão se lembrar: “Não julgueis para não serdes julgados” (Mt 7,1). Mas ele julga sem ter condições de avaliar a conduta e a consciência de milhares de pessoas. As generalizações facilitam os juízos porque elas não têm compromisso em avaliar as variações, as exceções. Ele ignora a justiça de Jesus porque está apressado em condenar. O apressado deveria se lembrar do conselho de Tiago para que sejamos lentos na raiva porque a cólera do homem não é capaz de cumprir a justiça de Deus (Tg 1, 19-20).
A noção de justiça para Jesus está na contramão nossa e da interpretação da Lei de seu tempo. A parábola dos trabalhadores enviados à vinha é decisiva para esta questão (Mt 20, 1-16). O pai de família contrata pessoas em várias horas do dia e, à tarde, paga o mesmo salário para cada um. O reclamão acha esta atitude injusta. O pai de família pergunta se ele está com ciúme de ele ser bom. Há pessoas que têm ciúmes de Deus ser bom. Ele projeta a mesquinhez do seu coração na imagem de Deus. Então, pensa e quer que Deus aja como ele agiria.
Mas Deus pune o pecado dos maus nos inocentes? Em João 9, 1-12, os discípulos de Jesus lhe perguntaram se o cego tinha nascido com a deficiência porque seus pais tinham pecado.  Ele responde que nem ele e nem seus pais (Jo 9,3). Jesus não acreditava que os inocentes possam ser punidos por causa dos pecadores. Lucas reporta também uma situação na qual alguns galileus tinham morrido com a queda da Torre de Siloé. Jesus diz que aqueles que morreram daquela forma trágica não eram mais pecadores do que os outros. Portanto, Deus não age como nossa professora de 5ª série que deixava toda a turma de castigo por que não sabia quem era o culpado de roubar a caneta do coleguinha e vivia repetindo: “os justos pelos pecadores!”.

3.    Considerações finais

Portanto, concluímos que Deus é misericordioso, não é vingativo, ele não trata as faltas humanas como achamos que devem ser julgadas. Isto jamais significa que ele aprova o erro. Ele só não julga como julgamos. Este é o Deus da fé de Jesus Cristo.  A fé precisa de uma boa dose de razão. Os males têm causas naturais ou da ação humana. O vírus é uma causa natural que mal convivida pelo homem pode gerar tragédias. Quanto ao problema total sobre o mal, não temos respostas definitivas para isso. O que eu sei é que quem tenta pintar Deus muito vingativo, não entendeu Jesus. E acabam na pressa de julgar os pecados da humanidade, chamando de Deus de mau. É propaganda contra!
Precisamos saber distinguir as causas do mal. Existem situações que não entendemos ou não aceitamos, mas não temos como atribuir isto a Deus dentro de uma leitura cristã da Bíblia. Fora deste domínio semântico, outras abordagens são possíveis, é claro. Mas estou falando dentro do pensamento cristão. Além disso, a diversidade literária da Bíblia te dará resposta para várias posições. Contudo, se você está interpretando como cristão, a chave hermenêutica é a de Jesus.
O que esperamos das pessoas de fé neste tempo de pandemia é que elas usem a Bíblia para consolar e dar esperança àqueles que sofrem e que estão apreensivos. As leituras apocalípticas e de vingança só assustam as pessoas e fazem propaganda contra a imagem de Deus. E também não usem discursos fundamentalistas para atrapalhar o trabalho dos profissionais de saúde. Não seja profeta da desgraça! Enfim, lave as mãos, evite aglomerações e fique em casa!




[1] Filósofo e mestre em Ciências das Religiões. Autor do livro “O Evangelho de Tomé: A Outra Face de Jesus” (2020).

sábado, 21 de março de 2020

AS REPRESENTAÇÕES NEGATIVAS E COVID-19


Em tempos de crise, vamos buscar consolações na filosofia. Epicuro de Samos e Epicteto são filósofos da antiguidade que podem nos ajudar muito com seus conselhos morais.
Segundo Epicteto, “as coisas não inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas”. Em tempos de crise, devemos procurar manter uma opinião sobre os fatos que nos possibilitem encontrar a tranquilidade. A opinião que temos do sofrimento e da morte torna tudo mais difícil.

As coisas não inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas. Por exemplo a morte nada tem de terrível ou também a Sócrates teria se afigurado assim , m as é a opinião a respeito da morte de que ela é terrível que é terrível! Então, quando se nos apresentarem entraves ou nos inquietarmos ou nos afligirmos, jamais consideremos outra coisa a causa, senão nós mesmos isto é as nossas próprias opiniões.[1]

A opinião sobre um acontecimento faz toda a diferença. Existem muitas possibilidades sobre o futuro. Se você escolhe se preocupar com as possibilidades menos relevantes, comprometerá o cuidado com o momento. Portanto, procure pensar na possibilidade de que as coisas vão ocorrer bem e esteja firme para fazer o que é necessário no tempo preserve. O pensamento negativo sobre o futuro compromete nosso presente. Se superarmos as representações nocivas sobre os fatos, conseguiremos manter a nossa tranqüilidade.
Com o pensamento positivo, teremos mais condições de tomar nossos cuidados.De acordo com Epicuro, a vida feliz depende da prudência.[2] Ser prudente é prever os futuros danos e se antecipar no cuidado. Muitas vezes, para termos prazer no futuro, devemos renunciar algumas coisas. A prudência manda a gente prevenir. Não temos certeza do desenrolar das coisas, mas se agirmos com cautela, não teremos motivos para arrependimentos.

Sejamos prudentes, sem entrar em pânico! Fique casa. Cuide de sua higiene. Vai passar!



[1] EPICTETO. O Encheirídion de Epicteto.  São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2012, p. 19.
[2] EPICURO. Carta sobre a Felicidade. São Paulo: Editora UNESP, 2002. P. 45.