terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Cristianismo e Não-violência




A IN/COMPATIBILIDADE MORAL DO CRISTIANISMO COM A PENA DE MORTE: UMA LEITURA DE MATEUS 5, 39




José Aristides da Silva Gamito


“Quando você olha muito para um abismo, o abismo olha para você.” Nietzsche, Além do Bem e do Mal.

1.    Introdução

            Com as discussões das redes sociais e os confrontos de ruas em torno do tema da criminalidade no Brasil, cada vez mais cristãos optam pela bandeira do “bandido bom é bandido morto”. O problema é que o apelo não é apenas pela pena de morte, esta supõe um julgamento, as pessoas têm clamado pela execução sumária do bandido a ser efetuada por qualquer cidadão. O debate se incendeia mais ainda quando se propõe armar a população. São soluções pragmáticas e imediatistas que visam ilusoriamente por fim à violência no país. Porém, para uma solução permanente é necessário pensar a questão muito além de eliminar bandidos, é preciso não criar mais bandidos. Além da discussão política do tema, queremos apresentar o princípio de não-violência do cristianismo que é incompatível com a proposta de execução de bandidos, atualmente, defendida por muitos cristãos. Portanto, apesar de apresentarmos argumentos políticos, queremos aqui restringir o debate à consequência moral destes apelos pró-violência dentro do cristianismo.

2.    Um discurso mal sustentado

            É um tema desafiante para um debate sério porque as pessoas indignadas com a violência ficam mais agressivas, vêem apenas o aspecto da solução imediata: Armar os cidadãos e matar bandidos. No fundo existem algumas incompreensões conceituais quanto ao tema: a) Noção reduzida de direitos humanos – que entende pela expressão “comissões de vistorias em presídio”; b) O funcionamento do Estado democrático como garantia de direitos universais; c) Pensar que um debate contrário à execução sumária de bandido é “mimi”.
            Primeiro ponto. Direitos Humanos é um conceito amplo, e uma das maiores conquistas da modernidade. Ele tem suas origens no Iluminismo com a concepção de direitos fundamentais, naturais e universais que todo ser humano possui. A liberdade de expressão que garante este nosso debate é um desses direitos. Não se pode confundir isso com “Comissão de Direitos Humanos”. Essas comissões têm como função dentro de uma democracia controlar os excessos do Estado. Não se pode confundir as duas coisas: Direitos Humanos (conceito/valores) e Direitos Humanos (comissão/instituição). Então, é preciso direcionar a crítica aos excessos dessas “comissões” que produzem um efeito indesejável que é o aumento da impunidade.
            Segundo ponto. O Estado democrático comporta os direitos fundamentais de todo cidadão. São mais do que direitos humanos, isso envolve direitos dos animais e do ambiente como um todo. O grande desafio para a democracia é garantir ao mesmo tempo a segurança das pessoas sem replicar a violência. O que mais desafia as pessoas quando se discute o problema da segurança é o aparente paradoxo: O criminoso tem direito a um julgamento justo porque continua sendo ser humano, mesmo que um ser humano da “pior espécie”. Mesmo que você retire dele a aplicação do termo “ser humano”, “cidadão”, mas ele é um “espécimen vivo”, “senciente”, que está sob a tutela do Estado. Abrir mão de um julgamento justo, é retornar ao um estágio anterior ao Estado, um estágio taliônico. Onde não existia justiça, mas vingança porque tudo era no mano a mano, sem um árbitro para controlar a medida da violência corretiva do delito.
            Terceiro ponto. A posição contrária à execução sumária de bandido não é “mimi”. Reduzir um debate dessa magnitude a uma mera questão de “ideologia” é agir de má-fé. Aliás, ideologia é outro conceito mal compreendido! O acabamento dos debates em redes sociais são muito superficiais, abruptos e agressivos, não se trocam argumentos, mas apenas bandeiras com frases de efeito e xingamentos. Isso não é sensato e nem resolve o problema! Não adianta utilizar subterfúgios com argumentação com clichês como “Tá com dó? Leva pra casa!”. Não tenho dó de bandido. Isso é argumento de quem não quer discutir a fundo a questão. Precisamos ponderar duas coisas. De lado, armar uma população despreparada e autorizar a execução sumária de bandidos não vão resolver o problema da violência. Isso é solução imediatista e particularizada, precisamos de uma solução integral e permanente. De outro lado, não pode continuar mais a insegurança, a bandidagem cercando todo o direito de bem-estar da população.  A bandidagem tem de acabar! É preciso mais investimento em segurança, justiça mais rápida e punições eficazes. Precisamos de uma solução para violência, mas que seja de um Estado democrático e não de um pensamento pré-moderno.

3.    O tratamento do inimigo/bandido no Evangelho

            Agora vamos ao cerne da questão proposta: É in/compatível a defesa da pena de morte com a moral cristã? Se você fizer uma leitura da Bíblia, com ênfase na lei judaica e na visão do Deus vingativo do Antigo Testamento, poderá defender a pena de morte. Mas se for uma leitura a partir de Jesus Cristo, literalmente, não tem como. A compreensão que Jesus tem sobre a violência é muito profunda e inteligente.
            Em Mateus 5, 43, 44, Jesus diz: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus;”. Jesus afirma neste evangelho que não veio para abolir a Lei (entende-se a Torah, por extensão, o Antigo Testamento), mas dar-lhe pleno cumprimento. Este sentido que Jesus aplica à relação amigo/inimigo supera a vingança e a lei do talião. Em vez de odiar, ele pede para amar os inimigos. Sabemos que isso não é fácil!
            Outra citação. “Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mt 5, 39). Não se preocupe! A legítima defesa está garantida. Ninguém vai sair por aí se deixando estapear. Quero frisar a expressar “não resistais ao mau” (em grego, μν μ ντιστναι τ πονηρ / me antistenai to ponero). O verbo antísthemi significa:

“anthístēmi (de / antí, "oposto / contra" e / hístēmi, "estar de pé, aguentar") - corretamente, tome uma posição completa contra, ou seja, uma "posição de 180 graus, contrária"; (figurativamente) para estabelecer a posição de alguém publicamente de forma visível "segurando o terreno", ou seja, recusando-se a ser movido ("empurrado para trás").”[1]

            A primeira acepção nos sugere tomar uma posição totalmente contrária ao mal em Mt 5, 39. Recusar a se mover na mesma direção ou repetir a ação do outro. Não ser vencido pelo propósito alheio de violência.

anthístēmi ("opor plenamente") significa declarar com força a convicção pessoal (onde eles permanecem de forma inabalável); para manter a posse; resistir ardentemente, sem desistir (deixando ir).[2]

            A segunda acepção é resistir, se opor, sem deixar ser levado. Adaptando à expressão de Mt 5, 39, é não deixar a provocação do mal nos fazer a praticar o mal também. Parafraseando Nietzsche a partir da metáfora do abismo, quando você se ocupa demais em responder à violência, você se torna violento. No grego clássico, anthistémi foi usado por Tucídides em sentido militar: “resistir fortemente a um oponente”. Aplicando o significado do verbo ao contexto de Mateus, podemos sugerir a seguinte interpretação. Jesus quer dizer para não responder a violência com violência porque assim o discípulo se tornar semelhante ao violento. Isso preserva a dignidade do homem de bem. Se ele se envolve com a índole violenta de quem é criminoso, reagindo na mesma medida, estará replicando o mal. Enfim, teremos uma luta de todos contra todos!
            Isso significa uma defesa da impunidade? Não, o mesmo Evangelho usa a linguagem da prisão, do pagar o que se deve à sociedade (Mt 5, 19; 5, 26). Em Mateus 25, há uma linguagem de condenação para todos aqueles que cometem iniquidades. Mas também recomenda a atenção àquele que está preso: “Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes” (Mt 25, 42-43).
            O sentido da relação do binômio violência/paz na compreensão de Jesus possui uma profundidade enorme e exige uma elevação de caráter para alcançá-lo. É por isso que o mesmo Jesus recomenda aos discípulos para excederem a justiça dos escribas e dos fariseus (Mt 5, 20). É difícil igualmente para o pragmático e para aquele que está sofrendo a violência naquele momento (completamente, indignado) agir desse modo. A nossa reação é normalmente querer revidar! Principalmente, quando temos uma Justiça que não pune. Mas o apelo de Jesus a favor da interrupção do ciclo de violência é mais inteligente e tem efeito mais duradouro.

Considerações finais

            Neste pequeno artigo, procurei demonstrar que a linguagem de Jesus é incompatível com a defesa da pena de morte. E atualmente, cresce o número de cristãos defensores da execução sumária de bandidos. Primeiro, do ponto de vista político, essas medidas não solucionam o problema da violência porque são soluções imediatistas. Elas eliminam bandidos, mas não acabam com a “fábrica” de bandidos (a realidade social). Armar a população não traz defesa para todos, na verdade, potencializa a violência. Transferir o dever da segurança para as mãos do cidadão, é admitir a incompetência do Estado. As execuções sumárias reinstalam a moral do talião, principalmente, se estiver nas mãos de qualquer cidadão. O Estado moderno e sua concepção de democracia estão além da mera vingança, ele tem de garantir a justiça.
            Segundo, qualquer tentativa de defesa da violência dentro do cristianismo não tem respaldo no Evangelho, portanto, será um cristianismo incompatível com Cristo. A não-violência é um princípio eficaz, humanista, desde que ocorra dentro de um Estado eficiente, que faça a justiça acontecer de verdade! Mesmo em situações precárias, seu valor ainda se impõe.

Referência

BIBLE HUB. 436. Antisthémi. Disponível em: http://biblehub.com/greek/436.htm. Acesso em 19 dez. 2017.

BÍBLIA ON LINE. Mateus. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/mt/5 . Acesso em 19 dez. 2017.




           





[1] Bible Hub. Disponível em: http://biblehub.com/greek/436.htm.
[2] Bible Hub. Disponível em: http://biblehub.com/greek/436.htm.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Epistemologia do Engajamento Político


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O QUE É SER CRÍTICO?

EPISTEMOLOGIA DO ENGAJAMENTO POLÍTICO

José Aristides da Silva Gamito


            As pessoas politizadas, geralmente, se consideram críticas e inteligentes. Os constantes debates entre partidários “lulistas” e “bolsonaristas” nas redes sociais me fizeram propor a presente reflexão. Será que pessoas que fazem postagens e ataques veementes a seus opositores são verdadeiramente críticas?
            Etimologicamente, o termo grego kritikós significa “ser capaz de fazer julgamentos”. O verbo krinein quer “separar; decidir”. O que muitos cidadãos apaixonados por suas ideologias e opções partidárias não percebem é que toda crítica comporta uma autocrítica. A adesão a um ponto de vista não é absolutamente racional. O assentimento a uma crença possui uma base afetiva. E quanto mais se repetem as razões para se defender uma ideia contra os outros, mas afetivamente convencidos de sua verdade estará o indivíduo a ponto de não admitir incoerências.
            Quando chega o momento de criticar, ou seja, de julgar, a imparcialidade é o maior desafio.  No caso das opções partidárias, a racionalidade dos argumentos se soma a uma carga emocional. Os extremismos ocorrem justamente quando as convicções têm mais bases emotivas do que racionais. A inflação das emoções gera o ódio ao opositor. Então, o indivíduo pensa de seu oponente: “Que idiota! Como pode defender tal ideia! Tal candidato!”. Ele deixa de perceber que ele e o opositor têm razões equivalentes para permanecer do lado que estão.
            O lugar do qual julgamos interfere bastante nas nossas decisões. O histórico individual, as referências de valores, as necessidades materiais e simbólicas, tudo contribui para as nossas opções. O extremista não admite as falhas de sua opção. Só as vê no opositor. A autocrítica ajuda o indivíduo a se situar diante de suas preferências e perceber que a opção está muito além de razões, mas envolve emoções e interesses.
            Bolsonaristas têm razões para votar em Bolsonaro. Lulistas têm razões para votar em Lula. E outros nos demais candidatos. São boas razões? Cada indivíduo fará suas considerações. Grupos, classes defenderão essas razões. As escolhas serão menos racionais quando os grupos se fecham e não ouvem as razões alheias. O ódio, o extremismo político e o rotular o opositor de “idiota” não configuram uma prática sadia de fazer política.
            Propor um equilíbrio nessas relações é pouco eficaz porque esta crítica pressupõe critérios que nem todo mundo quer seguir. Mas um pouco de respeito é fundamental! Nas redes sociais, basta dizer o que pensa e pronto! Não há compromisso com a resposta do outro. É bastante contraditório pensar que o outro tem uma opção diferente porque não é inteligente ou têm falha de caráter. Talvez uma boa dose de filosofia e de escolarização traga um pouco de lucidez ao debate.


terça-feira, 26 de setembro de 2017

Ética e Inclusão Social



O FRACASSO DA RELIGIÃO NA SALVAÇÃO DA HUMANIDADE

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            A Ong Oxfam divulgou um relatório nesta segunda, 25/09, sobre a desigualdade social no Brasil. No relatório intitulado “A Distância que nos Une”, há dados estarrecedores como a constatação de que seis bilionários brasileiros têm a mesma riqueza que 100 milhões. No mundo, 1% mais rico possui a mesma riqueza dos outros 99%. 700 milhões de pessoas no mundo vivem na extrema pobreza.
            Nos últimos 15 anos, o Brasil retirou da pobreza mais de 28 milhões de pessoas. Mas o Brasil ainda tem 16 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza. A partir de 2014, com a crise econômica e com as medidas governamentais agressivas esta conquista pode se perder. O Banco Mundial prevê até o final de 2017 o crescimento de 3,6 milhões de pobres no Brasil.[1]
            Para reverter esta situação e diminuir a desigualdade social é necessário planejamento econômico e boa vontade política. O problema da pobreza não é um fenômeno inevitável. Para além da política, não podemos deixar de questionar porque apesar da fé e da dedicação à religião por parte da população brasileira, o discurso da inclusão e da fraternidade não se torna realidade. Parece que a religião está preocupada demais em salvar almas e não tem um projeto para resolver os males da humanidade.
            A inversão de prioridades na religião impede que grandes ideais como igualdade e fraternidade sejam praticados em grande escala na sociedade. Os discursos éticos laicos também não conseguem muita adesão. E quando o cidadão religiosamente e eticamente relaxado entra para a vida política promoverá sempre mais medidas que não incluem o pobre. Neste sentido, a pretensão da religião salvar a humanidade é um fracasso.
            É necessário que se promova uma Revolução Solidária que comprometa compromissos individuais e públicos em favor da igualdade. A religião como uma atividade que promove valores tem sua culpa quando não faz isso. Reconhecer o direito de bem-estar do próximo deveria ser o maior mandamento. E isso está no cerne do cristianismo no discurso de Jesus, mas se ignora isso na prática por conveniência. No silêncio covarde da sociedade, há a convicção de que é preciso ter pobres para sustentarem os ricos.


[1] OXFAM Brasil. A Distância que nos Une: Retrato das Desigualdades Brasileiras. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf . Acesso em 26 set. 2017.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Latim hoje



QUEM DISSE QUE O LATIM É UMA LÍNGUA MORTA?

Daniel Gallagher, principal latinista do Vaticano.

            De fato o latim não é uma língua nacional, nem materna de algum cidadão, mas é relativamente falada em associações de latinistas em eventos organizados para esses fins, e amplamente utilizada em textos. A partir do Renascimento continua sendo produzida uma literatura em latim. Um dos grandes guardiões do latim é, sem dúvida, a Igreja Católica. No Vaticano há uma academia e escritório de letras latinas.
            Os documentos oficiais da Igreja Católica são traduzidos para o latim. Sete padres compõem o Escritório de Letras Latinas. O coordenador do corpo de tradutores é o estadunidense Daniel Gallagher. Seu trabalho passou a ser comentado depois que foi divulgado quem era o tradutor dos tuítes do papa. Nos trabalhos do escritório, os latinistas procuram manter viva a língua.