domingo, 29 de setembro de 2019

Quem roubou de mim o tempo presente?



José Aristides da Silva Gamito


Você já pensou como você se relaciona com o tempo? Ele é uma categoria muito importante porque a utilizamos para nos conectar à realidade.  O filósofo Kant considerava que o espaço e o tempo são categorias que nos permitem conhecer o mundo. Por meio do tempo, consideramos a sucessão dos fatos, localizamos nossos afazeres. Sua aplicação nos permite classificar o que veio antes de nós como passado e o que virá como futuro. Porém, só fazemos isso porque partimos da única realidade existente que é o presente. Mas, em tempos de redes sociais e de vida virtual, estamos mudando essas categorias ou a percepção delas.
O tempo presente está em processo de mutação. Pensemos em uma situação. Quando nos reunimos para uma pizza, nos encontramos, porém, ao mesmo tempo já não estamos lá na pizzaria. As pessoas estão conversando à mesa não com aqueles que estão presentes, estão falando através das redes sociais com aqueles que estão distantes. E quando encontram essas pessoas que estavam distantes é que falarão com aquelas que estavam presentes. As redes sociais permitiram o desencontro no encontro.
Uma segunda situação é aquela de que não vivemos mais o presente. Quando vamos a um show nós não assistimos a ele, nós o gravamos. Estamos o tempo todo transformando em memórias (stories) aquilo que deveríamos fruir como tempo presente. Assim como aconteceu com o tempo na pizzaria, ocorre agora no show. Estamos ausentes no momento presente. Estamos preocupados com o fato de que o instante vai virar passado, então, o antecipamos, transformando-o já em memória pela câmera de uma celular. Mais uma vez, estamos presentes e ao mesmo tempo ausentes no show.
Quem roubou de mim o tempo presente? Os recursos das mídias sociais nos levaram o tempo presente. Estamos nos ausentando do espaço e do tempo e nos encerrando na reclusão das categorias virtuais. Quando nos abrimos ao outro, estamos, na verdade, nos encerrando numa reclusão interior onde há uma imagem do outro. Mas não é o outro, é apenas uma extensão de nós mesmos. Por isso, temos dificuldade de lidar com as diferenças de opinião nas redes sociais. Mas isso pode ser diferente, as redes sociais podem promover encontros e reencontros. É questão de aprendizagem! Façamos isso enquanto é tempo!

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Agricultores se tornam lideranças comunitárias


A Revolução da Leitura Popular da Bíblia nas Comunidades Eclesiais de Base de Vermelho Velho (MG)

José Aristides da Silva Gamito

Depois do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica se reconciliou com a sua realidade na América Latina. Algumas significativas transformações pastorais ocorreram em vários países latino-americanos. O relato a seguir é um caso que se insere neste amplo contexto de renovação conciliar. Na Zona da Mata Mineira, especificamente na diocese de Caratinga, desenvolveu-se uma prática eclesial que se centrava na leitura popular da Bíblia que empoderava lideranças rurais para atuarem na dinamização das comunidades católicas.
A principal revolução operada nesta fase foi a mudança da Bíblia de mãos. Antes uma leitura sistemática da Bíblia ficava reservada aos clérigos. Mas quando vários leigos foram incentivados a ler a Bíblia, eles se despertaram para outros tipos de leituras do mundo, incluindo, a sócio-política. Na diocese de Caratinga, os protagonistas da popularização da leitura bíblica foram os sacramentinos Alípio Jacintho da Costa e João Resende.
Em Vermelho Velho, tudo aconteceu a partir da década de 50. Sigo relatos orais de antigas lideranças, sendo um deles meu pai, Aristides Antônio da Silva (foto). Naquele período, Alípio e João Resende organizaram uma semana bíblica. Era um período de quase quinze dias de estudo da Bíblia e de pontos de apologética. Cerca de 15 trabalhadores rurais compareceram. Depois de uma visão geral sobre a Bíblia, estes homens realizaram uma missão de formar comunidades eclesiais. O núcleo inicial era estabelecer um lugar de culto e organizar uma equipe que realizasse os cultos dominicais. Foram estes pioneiros: Joaquim Costa Perázio, Aristides Antônio da Silva, Agenor Lucas Filho e José Genuíno de Paula, dentre outros.
Durante este período foi fundada a maioria das comunidades eclesiais da Paróquia São Francisco de Assis, de Vermelho Velho, como São José do Vista Alegre, São Geraldo do Cafezal, Fundaça, São Sebastião do Rochedo. Os agricultores passaram exercer uma forte liderança religiosa e social nestas comunidades. Além do dado religioso, a mudança de hábito na vida destes homens foi notável: passaram a ler mais, a se interessar pelos assuntos comunitários. Esta abertura de horizontes permitiu que eles percebessem a necessidade de mudar o espaço onde moravam. Todas estas mudanças foram operadas a partir da descoberta da leitura, especificamente, da Bíblia.

Para uma leitura especializada deste movimento, leia:

GAMITO, J. A. DA S. Hábito de leitura da Bíblia: Um legado da Reforma Protestante e o surgimento do Mobon na Diocese de Caratinga (MG). Sacrilegens , v. 14, n. 2, p. 65-74, 5 set. 2017.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Verdade nas redes sociais


UMA EPISTEMOLOGIA DAS CRENÇAS COLETIVAS: VERDADE E APARÊNCIA NAS POSTAGENS EM REDES SOCIAIS

José Aristides da Silva Gamito[1]

1. A situação das postagens com conteúdos políticos

Os julgamentos das ações humanas são empreitadas que comportam riscos. Principalmente, quando se trata de questões coletivas. As redes sociais trouxeram à tona uma discussão de suma importância. Ela diz respeito sobre como podemos julgar uma situação estando distante das ocorrências. Considerando este debate ao extremo, podemos perguntar se as redes sociais são mídias confiáveis para serem tomadas como “fontes” de notícias. Ou se podemos formar juízos confiáveis a partir delas. Dentre muitos aspectos que podem ser abordados sobre esta questão, quero levantar uma breve discussão sobre os juízos políticos.
As postagens em redes sociais, intimamente chamadas de posts, são gêneros textuais concisos, às vezes, aparecem na forma indireta de compartilhamentos de informações de terceiros. Como são breves, dependem de uma mensagem bem clara e objetiva visto que ninguém consegue dizer tudo com um número reduzido de palavras. Muitas vezes, as pessoas não usam suas palavras, mas adotam frases de terceiros, ou utilizam links de textos de terceiros também para transmitir algum posicionamento.
Até neste ponto, não há problemas porque a natureza funcional das redes sociais é esta. Trata-se de uma comunicação rápida, concisa.  Porém, a questão torna-se muito complexa quando os usuários da internet começam a formar juízos a partir de uma ou de uma sequência de postagens. As recentes e famigeradas fakenews ganham força quando as pessoas, dentro deste emaranhado de informações, tomam as informações que chegam até elas como verdade. Mas estas informações foram replicadas muitas vezes, acriticamente, até chegar a determinado receptor que faz delas uma verdade. Nestas situações, pouco se pergunta sobre as condições que geraram a informação. Quem é o fiador daquela verdade? Elas foram geradas com quais intenções? Como foi obtida a informação?
Outro ponto que quero levantar é sobre a reação dos internautas sobre o perigo das fakenews. Estou vislumbrando estas reações no campo político. As pessoas passaram a utilizar a classificação de fakenews para esvaziar o discurso do oponente. Muitos já consideram, de antemão, que tudo que os simpatizantes do partido ou do político X postar no facebook ou no twitter é falso. Mas, pelo contrário, tudo que eles postam sobre o partido Y é verdadeiro. Em todas as etapas da veiculação de notícias nas redes sociais, faz-se necessária uma capacidade crítica que vença até mesmo as armadilhas das paixões partidárias. Se alguém passa a considerar que tudo que o outro disser é inválido, portanto, não há comunicação. Isso invalida a função de uma rede social, por exemplo.
Os juízos políticos veiculados em redes sociais são emitidos dentro de uma situação comunicativa conflituosa. Dentro da atual polarização política brasileira, os internautas adotaram uma “leitura da suspeita”.  A suspeita metódica é uma ferramenta válida para analisar conteúdos ideológicos, porém, quando a suspeita já se converte em juízo, há um embaraço para o conhecimento. As generalizações a partir de títulos de matérias sem a leitura completa das notícias é uma prática muito comum. Quando a suspeita sobre a comunicação do outro não envolve a suspeita sobre mim mesmo,  este procedimento é extremamente desfavorável. Portanto, a suspeita metódica é válida, mas a suspeita que se converte em conclusão, em sentença, é um obstáculo.

2. Os limites dos juízos sobre ações coletivas

Para ilustrar a dificuldade dos julgamentos de situações à distância e que envolvem juízos sobre ações de terceiros, vamos a um causo.

A vizinhança do bairro Mirandão viveu uma situação inusitada na manhã de um domingo. Joaquim entrou correndo para a sua garagem. Os vizinhos da direita, que ouviram ele discutir na véspera com sua esposa, concluíram: “Joaquim vai matar a sua mulher”. O vizinho da esquerda que estava vindo do bar, e o viu conversando com um rapaz, comentou com a mulher: “Joaquim bateu na cara de um moço na esquina e foi buscar uma arma”. Porém, depois de alguns minutos, Joaquim chega na cozinha todo suado e diz para a sua esposa: “Teresa, eu encontrei meu amigo de infância, o Zezinho na esquina, dei um abraço apertado nele, sacudi-o, falando, ‘cara, por que você some? Quanto tempo?’. Mas não tive o prazer de terminar a conversa, tive de vir correndo procurar um banheiro. Bateu uma dor de barriga forte!”.

Neste caso, dois grupos de pessoas interpretaram a ação de Joaquim a partir das informações que tinham. Quando julgamos determinadas ações a partir de suspeitas apressadas tendemos a tomar qualquer indício favorável à nossa tese como conclusivo. É, justamente, este tipo de interferência emotiva no juízo que leva os internautas a generalizar, formar preconceitos e rotular seus opositores políticos. A formação do juízo não depende exclusivamente da razão, as emoções participam conjuntamente. Mas, quando não se tem um critério claro no julgamento, as pessoas acabam odiando as outras porque estão convictas de que elas estão erradas e são “comparsas do mal”.  Mas cada um só tem conhecimento de uma parte do todo. Isso pode ir longe! Ainda mais quando se coloca uma boa dose de teoria conspiratória.
Estas situações que ocorrem na informalidade, podem do mesmo modo afetar as decisões maiores como o funcionamento das instituições. Na situação específica do embate ideológico bolsonarista-lulista, podemos verificar nas redes sociais como as análises de “suspeitas” obnubilam a razão e os critérios objetivos das pessoas. Elas acabam por perder boas oportunidades de contribuir para a melhoria da política porque trabalham em mão única: só veem os acertos de seu lado e os erros do outro lado.  Sempre quando eu disser isso, pense no vice-versa. Parece ser vergonhoso fazer a autocrítica, é como dar pontos para o inimigo. No fundo esta radicalização comunicativa, torna a comunicação bloqueada, o conhecimento parcial e a verdade inatingível.

3. Considerações finais

            As redes sociais tornaram-se um campo fértil para a pesquisa sobre as crenças coletivas. Principalmente, de como elas afirmadas e sua relação com a verdade. Enquanto, muitos estão perdidos no partidarismo e não podem dar conta dessas características porque precisam derrotar o opositor, estas oportunidades são boas para o pesquisador da epistemologia entender como funcionam estas crenças coletivas dentro do espaço das redes sociais. Fica por aqui apenas uma provocação inicial.


[1] Mestre em Ciências das Religiões (linha de pesquisa: Análise do Discurso), filósofo e professor de Teoria do Conhecimento.