sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

História de Conceição de Ipanema

 O PEQUENO CONTESTADO E O DISTRITO DE SÃO BARNABÉ

 

José Aristides da Silva Gamito

 

A história de Conceição de Ipanema está vinculada a um acontecimento de grande pesa na história mineira: o Contestado. As divisas entre os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo ficaram indefinidas por bastante tempo, inclusive na região onde atualmente são os municípios de Conceição de Ipanema, Mutum e Lajinha. A falta de um consenso gerou uma disputa entre os dois estados. Houve conflito maior denominado Contestado que envolveu as cidades de Barra de São Francisco e de Mantena. Esse é o mais documentado. Mas, situação semelhante ocorreu em Conceição de Ipanema. Quando se fala em Contestado, temos de distinguir também o conflito entre Paraná e Santa Catarina ocorrido entre outubro de 1912 e agosto de 1916.

Portanto, estamos tratando do Contestado mineiro-capixaba, de modo mais geral.

 

O Contestado foi um conflito que começou por volta de 1935, quando o Estado de Minas Gerais invadiu as fronteiras capixabas com o objetivo de tomar posse das ricas regiões do norte do Estado, além do desejo de chegar ao mar, visto que Minas Gerais é um estado central. O conflito começou na Serra dos Aimorés e desceu até chegar à região de Barra de São Francisco que, anteriormente, era um distrito da cidade de São Mateus-ES. Caso passassem por Barra de São Francisco (na época, São Sebastião), não teriam dificuldade para realizar um sonho antigo dos mineiros, ter um porto de mar (FAGUNDES, 2018, p. 12-13).

 

O recorte dessa exposição é o que poderíamos chamar de Pequeno Contestado, isto é, dos limites do município de Manhuaçu com os municípios capixaba. Dentro dessa área estavam Conceição de Ipanema, Mutum e Lajinha. Há dois jornais da época que registrou o desenvolvimento dos fatos: O Manhuassu e Leste Mineiro. Em 12 de outubro de 1902, um texto do jornal O Manhuassu reivindicava as terras do Contestado para Minas Gerais. Destaca-se nessa área o papel do distrito de São Barnabé. Trata-se do povoado mais antigo de Conceição de Ipanema e que fazia parte de Mutum, sendo distrito de 1906 a 1915.

       A situação gerava insatisfação por causa da insegurança jurídica que se instaurou na região. Os dois estados estavam legislando em duplicidade sobre o mesmo território. Muitos produtores acabavam pagando impostos em Minas Gerais e no Espírito Santo. Esses conflitos se acirravam porque havia lideranças nas localidades que estavam divididas entre os interesses dos dois estados. Em 1902, os fazendeiros da região tiveram que pagar impostos para o município de Rio Pardo. Mas a cobrança foi feita também pela câmara de Manhuaçu (AN, 1902, p. 1).

       Para garantir o território, as autoridades do Espirito Santo começaram a interferir administrativamente na região e identificaram um ponto estratégico para assegurar a posse da região. A solução era organizar o poder local. Em março de 1906, foi criado o distrito de São Barnabé para defender os interesses capixabas diante de Ipanema que era defensora de Minas Gerais. Foi mentor dessa criação o padre Luiz Evaristo Villa. Em 1911, Minas, por sua vez, emancipou Ipanema para barrar a expansão capixaba. No ano seguinte, Espírito Santo emancipou Mutum com o nome de Marechal Hermes para impor uma divisa entre os estados (OLIVEIRA, 2010, p. 22).

       Em janeiro de 2014, o coronel João do Calhau protagonizou o conflito mais violento do Pequeno Contestado. Ele saiu com tropa armada de Ipanema e foi conquistando as localidades que ainda tinham lideranças leais aos capixabas. Seus homens passaram por Conceição de Ipanema, Chalé, Lajinha do Chalé, Mutum e chegaram a Aimorés. A maior resistência era liderada pelo coronel Osório Ribeiro de Oliveira, de Mutum. Para evitar mortes, este acabou cedendo. Segundo o jornal o Monitor de 1915, coronel Calhau retirou os arquivos do distrito de São Barnabé e os transferiu para Ipanema. O gesto representa o fim do domínio da capixaba (MOREIRA, 2018, p. 142).

       Em 30 de novembro de 2014, a questão da zona litigiosa foi resolvida por um conselho arbitral e o território de Mutum foi devolvido para Minas Gerais, inclusive, o distrito de São Barnabé. No final daquele ano, ainda houve contestação da decisão por parte do Espírito Santo. No entanto, em 1926, foi celebrado um acordo político entre as lideranças políticas locais sob a mediação do coronel Calhau. Esse ficou conhecido como Acordo de Chalé (IPANEMA, 1926). O gesto pôs fim às insatisfações. Mas a situação acabou pacificada, ficando ainda, a parte do Contestado de Mantena e Barra do São Francisco.

 

Referências

 

AN. Hemeroteca Digital Brasil. Jornal: Leste Mineiro. Villa José Pedro, ano 1, número 21. 23 mar. 1913.

 

FAGUNDES, Tiago Viana. Memória oral do contestado entre Espírito Santo e Minas Gerais: um olhar sobre a participação de barra de são Francisco e Mantena. Dissertação de Mestrado. Faculdade Vale do Cricaré, São Mateus, 2018.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Quando os filósofos falam de felicidade

 

Neste dossiê que desenvolvemos com os alunos do 1º ano de Filosofia do Seminário Diocesano, procuramos reunir as propostas de vários filósofos sobre ser feliz. O projeto de pesquisa integrou a proposta de iniciação científica dentro das aulas de Dissertação Filosófica no ano de 2022. Está disponível para baixar gratuitamente:  https://www.academia.edu/91579403/Quando_os_fil%C3%B3sofos_falam_de_felicidade


 

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Sobre o Segundo Turno

 SEGUNDO TURNO


Dentro do legítimo processo democrático, o Brasil convoca os cidadãos para mais um exercício e prática de sua cidadania. Assim aconteceu no Primeiro Turno das Eleições, dia 2 de outubro, elegendo os Senadores, Deputados, Governadores, levando para o Segundo Turno, Bolsonaro e Lula. Em 30 de outubro, pelo voto, que deve ser livre e responsável, será eleito o próximo Presidente da República.

Com essas Eleições de Segundo Turno encerramos um período de profundas polarizações, uma verdadeira testagem de força entre o candidato e seus aliados de um lado e de outro. As Eleições do Primeiro Turno transcorreram de forma tranquila, todos indo às urnas, sempre prevendo qual seria o resultado final. Foi confirmação da maturidade cidadã e compromisso com um país melhor.

Agora torcemos pela mesma serenidade do Segundo Turno. Essa serenidade precisa acontecer também no reconhecimento da identidade de quem for eleito. É fundamental saber perder e saber ganhar, sempre com a mente voltada para a prosperidade social e econômica da Nação. O bom cidadão é quem soma forças, mesmo perdendo nas urnas. O país é maior do que os interesses pessoais.

Mesmo com atitudes extremistas, notícias falsas, agressões, “inimizades” políticas, podemos dizer que os momentos eleitorais são excelentes espaços de democracia. Cada cidadão tem liberdade para realizar suas manifestações e sentimentos partidários e torcer pelos seus candidatos. Sinto que as pessoas se deixam levar por força das ideologias, de interesses que estão acima do próprio candidato.

Hoje se fala em direita e esquerda. Essas palavras passaram a ser o que define a ideologia de muitos cidadãos, passando inclusive acima da identidade e do perfil de honestidade de um candidato. Não importa se é bom ou ruim candidato. Importa que ele seja do meu lado, de direita ou de esquerda. É uma realidade que pode ajudar, mas pode também prejudicar uma melhor viabilidade do país.

Enfim, a história do Brasil vai prosseguindo nos rumos que são tomados. Um ditado popular diz que “o povo tem o governo que merece”. Se é fruto do sufrágio popular, certamente o ditado tem um sentido correto, mas é importante cada cidadão agir e votar com total responsabilidade, sabendo que seu voto implica consequências para um país melhor ou não. Que Deus abençoe estas Eleições!

 

Dom Paulo Mendes Peixoto

Arcebispo de Uberaba

Teologia da Libertação não é comunismo

 O QUE É TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO?

 

Uma teologia que precisa ser revisitada, antes de ser refutada

 

A Teologia da Libertação vem sofrendo ataques sistemáticos desde sua origem e, como era de se esperar, nessas eleições, novamente aparecem as difamações dos defensores da Teologia da Libertação. As críticas acabam dividindo os católicos nessa polarização bolsonarista/lulista. No entanto, pouca gente sabe, de fato, o que é a Teologia da Libertação. A equiparação de Teologia da Libertação com comunismo é mais uma desonestidade intelectual em pauta.

Primeiramente, devemos fazer a distinção que o sociólogo Michel Löwy faz. Há a Teologia da Libertação e o Cristianismo de Libertação. O Cristianismo da Libertação é uma confluência de diversas ações pastorais que procuravam enfrentar os desafios sociais e econômicos dos cristãos católicos nos fins de 30 a início de 40. Foram exemplos disso: a Ação Católica, Juventude Universitária Cristã, Juventude Operária Cristã e Comunidades Eclesiais de Base.

A Teologia da Libertação surgiu depois como reflexão espiritual sobre essa prática. Ela recebeu influência desse novo modelo pastoral e como produção de ideias o influenciou. Mas, como o próprio nome diz, Teologia da Libertação é um conjunto de textos. É literatura. Não é um movimento político. Muitos usam o termo de modo inadequado.

São esses os autores que fundamentam os princípios da Teologia da Libertação: Gustavo Gutiérrez (Peru), Rubem Alves, Hugo Assmann, Carlos Mesters, Leonardo e Clodovis Boff, Frei Betto (Brasil), Jon Sobrino, Ignacio Ellacuría (El Salvador), Segundo Galilea, Ronaldo Munoz (Chile), Pablo Richard (Chile-Costa Rica), José Miguez Bonino, Juan Carlos Scanone, Ruben Dri (Argentina), Enrique Dussel (Argentina-México), Juan-Luis Segundo (Uruguai), Samuel Silva Gotay (Porto Rico).

Quais são as ideias mestras da Teologia da Libertação? 1ª - A proposta de que a Igreja deve fazer uma “opção preferencial pelos pobres”. Isso não significa se esquecer dos ricos na comunidade, mas, de olhar primeiro para as necessidades dos pobres. 2ª – A salvação começa com a libertação histórica do ser humano (de suas condições de perda de direitos e de dignidade). 3ª - Não há distinção entre história humana e história divina, entre deveres terrenos e deveres celestiais – ou seja, o Reino de Deus começa acontecer em vida. 4ª – Leitura da Bíblia a partir do modelo de libertação do Êxodo. A partir daí, elenca-se uma série de ações libertadoras na Bíblia. 5ª – Crítica ao capitalismo como idolatria do lucro. A base bíblica dessas ideias é inegável. O profetismo do Antigo Testamento está repleto de críticas ao poder dos reis e com apelo ao cuidado do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro. Além disso, toda a prática de Jesus é de inclusão das pessoas desamparadas e discriminadas: a mulher adúltera, o cego, o leproso, o ladrão na cruz, os famintos. Assim como ele critica a exploração do comércio.

Quais críticas existem contra a Teologia da Libertação? É preciso entender o contexto. O Cristianismo de Libertação surgiu a partir dos anos 40, ganhando corpo nos anos 60, esse período coincide com as revoluções comunistas. A Igreja temia uma adesão em larga escala ao comunismo. Como a Teologia da Libertação criticava o capitalismo e suas formas de exploração, isso soava para os conservadores como um apoio ao comunismo.

Outro temor era de que fosse um modelo de religião materialista. Houve muitas tentativas de vincular as ideias da Teologia da Libertação ao marxismo. Mas há uma distinção clara. Marxismo é uma teoria/movimento política e econômica. Teologia da Libertação é uma reflexão espiritual e pastoral. Mesmo havendo analogias, nem todos os teólogos da libertação conheciam a fundo as teorias de Karl Marx. A Teología del Pueblo da Argentina, por exemplo, não tem relação nenhuma com o método marxista. Aliás, surge até à parte das demais teologias do continente.

Embora, houvesse analogias de ideias com partidos de inspiração socialista e até a entrada de pessoas do Cristianismo de Libertação na militância política, a Teologia da Libertação é puramente uma reflexão que tem em consideração a situação do pobre na prática pastoral. Portanto, não é um movimento político-partidário.

Como está atualmente a Teologia da Libertação?  As críticas repetidas contra a Teologia da Libertação foram geradas na primeira fase da teologia. O próprio Vaticano reagiu com censura contra vários teólogos. Mas a prática do Cristianismo de Libertação nunca foi impedida. Atualmente, a Teologia da Libertação já se transformou e ampliou a visão de libertação do pobre. A categoria envolve muitas identidades como as mulheres, os negros, os indígenas, os sem tetos, o meio ambiente. É uma defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos. É uma ação primeiramente eclesial, mas ela tem seu alcance até a esfera pública. Os cristãos são simultaneamente membros da Igreja e cidadão do Estado.

A respeito dos excessos, eles existem, como existe em todo movimento. O incômodo com o excesso de materialismo é uma percepção que se deve ao fato de que na Igreja havia um excesso de espiritualismo. A relação Igreja e sociedade passava pela conivência com o status quo. Questionar isso incomoda e até gera conflitos. A prática da caridade proposta pelo Cristianismo da Libertação depende do contato com a política porque não se pensa mais na caridade assistencialista e, sim, de promoção do sujeito. E isso depende de políticas públicas. Em todo movimento, deve se evitar o pensamento único. Tudo é questão de diálogo.

Mas isso não invalida a Teologia da Libertação que sempre foi uma reflexão espiritual, pastoral com base bíblica. Não é possível pensar o cristianismo sem a emancipação das pessoas. Lembre-se de Mt 25, 34-36:

 

Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver.

 

Neste texto, altamente soteriológico, acolher as categorias do faminto, do sedento, do estrangeiro, do nu, do doente e do encarcerado é condição para herdar o Reino dos Céus. Isso deve ser central no cristianismo. O problema é que os críticos da Teologia da Libertação não propõem uma alternativa pastoral para isso, apenas reduzem a tarefa da Igreja a ministrar sacramentos. É uma rejeição irresponsável do Cristianismo da Libertação. A Teologia da Libertação precisa ser revisitada, antes de ser refutada de modo generalizado. O abandono do discurso de inclusão pode levar a um esquecimento total do compromisso ético e social do cristianismo.

 

Leitura recomendada:

 

LÖWY, Michel. O que é cristianismo de libertação. São Paulo: Expressão Popular, 2016.

 

 

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Cristianismo psicoterapêutico

 O CRISTIANISMO É MERAMENTE TERAPÊUTICO?

 

José Aristides da Silva Gamito



Não existe um só cristianismo. Existem cristianismos. Nesta brevíssima reflexão quero falar de uma dessas variedades. Há uma forma de cristianismo em atividade que reduz todas as crenças e ritos a uma atividade terapêutica. Sim, uma psicoterapia. Nesta vertente cristã, Jesus é apresentado como um terapeuta que cura as doenças psíquicas e emocionais dos fiéis. O anúncio da fé em Jesus sempre pressupõe um contexto de sofrimento e de fracasso. As pregações e os hinos funcionam como discursos de motivação emocional. São palavras de ordem “vai passar”, “há esperança”, “você nasceu para vencer”. O rito litúrgico gira unicamente em torno da cura psíquica do crente e de sua motivação a acreditar em si mesmo.

Portanto, temos aí um cristianismo que reduziu sua função à psicoterapia. Há outras variedades de reducionismo. Eram motivos de constantes debates teológicos esses reducionismos no cristianismo antigo. O gnosticismo, por exemplo, reduzia o programa do cristianismo ao acesso a um conhecimento secreto que divinizava o fiel. Mas, afinal, qual é o programa do cristianismo dentro da tradição Jesus? A salvação é unicamente da psiquê?

O evangelho de Lucas apresenta o programa da salvação que Jesus oferece por meio desta citação do profeta Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4, 18-19). A função da pregação de Jesus é trazer novidades positivas para uma categoria socioeconômica chama de pobres, depois libertar os presos, curar as deficiências, libertar os oprimidos e anunciar um tempo especial.

Então, a função do cristianismo deve coincidir com o propósito da pregação de Jesus. Não é? Ela envolve aspectos físicos, psíquicos, socioeconômicos e políticos. Um conceito integral de salvação envolve a cura, libertação e preservação da integridade do homem inteiro. Salvam-se o corpo e a alma! A noção de salvação e, consequentemente, da função do cristianismo sempre esteve ligada a algum reducionismo. Quando se enfatiza demais em um aspecto, descuida-se dos outros. O discurso pentecostal foca na dimensão psíquica e se esquece das condições materiais dos fiéis. O resultado é uma igreja reduzida a um consultório psiquiátrico. O discurso da Teologia da Libertação enfatiza demais a dimensão sociopolítica e se esquece das condições psíquicas e espirituais. A igreja vira partido político. A teologia da prosperidade pesa a mão no sucesso financeiro e a igreja vira empresa. O conservadorismo católico enfatiza a moral sexual e o apego aos ritos e transforma a igreja em um departamento de censura.

Os reducionismos não traduzem de fato os discursos de Jesus. O cristianismo não tem unicamente uma função. Se fosse assim, será ineficaz, não atenderia todas as necessidades do ser humano. Por mais que muitos reivindiquem a leitura da Bíblia, acho que está faltando um cristianismo mais próximo dos evangelhos. Isso evitaria os reducionismos de compreensão do conceito de salvação e da função do cristianismo.


terça-feira, 26 de janeiro de 2021

“EU VIM PARA QUE TODOS TENHAM VIDA E A TENHAM EM ABUNDÂNCIA” (Jo 10,10): O ECO PERDIDO EM MEIO À PANDEMIA

 


José Aristides da Silva Gamito

 

Espero que a reflexão que proponho a seguir seja suficiente para que cristãos católicos e cristãos evangélicos se convençam de vez  sobre a obrigação moral coletiva de se precaver contra a transmissão da covid-19. Primeiramente, é preciso ficar claro que nenhum posicionamento partidário pode ser mais importante do que a preservação da vida. Não importa o modo como você imagina que devam ser as políticas de enfrentamento à pandemia, ou se é a favor ou contra, mas, uma posição deve ser consenso de todos os cidadãos: devemos nos proteger e colaborar para que o ciclo de transmissão do vírus termine. O imperativo desse dever moral surge do processo natural de contágio de doenças.

Segundo, não se trata de uma preferência pessoal, é uma obrigação coletiva. Nós vivemos numa sociedade e nossas ações individuais afetam a vida dos outros, principalmente, daqueles mais vulneráveis. Portanto, fazer um esforço individual e renunciar alguns hábitos em favor do coletivo é a forma de patriotismo que mais precisamos neste momento. Os cuidados de prevenção de qualquer doença exigem sacrifícios pessoais. Pensar contrário disso é imprudente, é irracional!

Se você professa a fé cristã não pode estar alheio ao dever moral de cuidar da vida. Jesus disse: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). Se você quer razões bíblicas específicas, consulte o código sanitário do Antigo Testamento. Levítico 13 prescreve o isolamento social para evitar contágio de lepra por 14 dias (Lev 13, 2-5) e inclui o uso de uma proteção da parte inferior do rosto (Lev 13, 45). Usar a prudência para evitar que uma doença se espalhe não é imposição política do século XXI, a humanidade sempre fez isso. E há fundamentos bíblicos suficientes a favor dos cuidados para que não reste dúvida a nenhum cristão.

As ações genuinamente cristãs, independente de hábitos e de preferências partidárias individuais, devem ser coerentes com a defesa da vida. Isso exige sacrifício individual como suportar a máscara, repetir hábitos de higiene e abrir mão de grandes reuniões, de festas e de viagens de férias. Vivemos uma espécie de anestesia diante da pandemia. Há milhares de católicos e evangélicos que frequentam as igrejas semanalmente e que não se sentem responsáveis pelo encerramento do ciclo de contágio do coronavírus. Primeiro, eles não se importam em serem contaminados e assumem o risco de um agravamento da doença; se testam positivo, andam criminosamente desprotegidos contaminando novas pessoas. Muitas dessas pessoas estão voluntariamente se tornando vetores de transmissão do vírus e gerando, por consequência, mortes de pessoas vulneráveis.

Esses hábitos contumazes soam muito egoístas. As pessoas não querem abrir mão do conforto e de parte da liberdade cotidiana por um bem maior. Lembre-se de que isso não é definitivo e se o fizermos quanto antes, mas cedo voltaremos à normalidade, inclusive, à recuperação da economia. São restrições transitórias. A sensação de perda de liberdade não permite a essas pessoas pensarem no bem coletivo. Quando alguém não está disposto a colaborar e quer transferir a responsabilidade para os outros, está construído o espaço perfeito para a recepção de qualquer discurso de negação e de subestimação da ciência, mesmo que aquele cidadão não tenha conhecimento especializado para entender minuciosamente questões de infectologia e de ciência em geral.

Em síntese, é um dever moral inegável de todos os cristãos tomarem seus cuidados de prevenção, envolvendo a si e aos outros, visto que todos os fundamentos bíblicos do Antigo e do Novo Testamento são favoráveis à saúde e à vida. E não será por motivos ideológicos ou partidários, ou por indiferença pessoal, que se tornará uma exceção. De onde saiu esse cristianismo contra vida? Se a religião não for favorável nem à manutenção da vida para que outra coisa ela servirá?!

domingo, 27 de dezembro de 2020

O tradicionalismo e a extrema-direita

 

ALGUMAS QUESTÕES SOBRE O TRADICIONALISMO SEGUNDO

BENJAMIN TEITELBAUM

 


Segundo a análise de Benjamin Teitelbaum, tradicionalismo é uma escola eclética espiritual e filosófica de alguns séculos. O tradicionalista entende que a melhor vida é a do passado. Então, procura retroceder no tempo para encontrar conceitos, valores e costumes para pautar sua vida. Os tradicionalistas da extrema-direita rejeitam modernidade. A modernidade é centrada na ideia de progresso e na liberdade e igualdade entre os seres humanos. Os tradicionalistas são contrários a tudo que deriva dessa premissa.

Eles não lidam com a ideia de mudanças no tempo e acreditam em verdades transcendentes. São contrários a possibilidade de progresso, defendem apenas estilos de vida. Em termos políticos, são contrários ao conceito moderno de Estado. É interessante que, apesar de defensores de crenças cristãs, podem ser até anticristãos em alguns aspectos. São mais favoráveis a uma religião hegemônica e predominante. Segundo Teitelbaum, eles elogiavam até alguns aspectos do islamismo. O professor relaciona o movimento a René Guénon. Seu conceito de Tradição era eclético.

Teitelbaum afilia a ideologia de Donald Trump/ Steve Bannon, Jair Bolsonaro/Olavo de Carvalho ao Tradicionalismo. Em síntese, eis algumas características apontadas pelo pesquisador e às quais faço algumas aplicações:

 

1.      O Tradicionalismo quer restaurar uma ordem e uma hierarquia cujo topo é representando por cristãos brancos, heterossexuais. Portanto, é antifeminista, pró-racista, diminuidor do espaço das minorias;

2.      É antiprogressista - o Tradicionalismo quer regredir a sociedade a alguns séculos antes e quer retoma a moral cristã medieval e a hegemonia do cristianismo;

3.      É cético em relação à ciência e por isso desestimula a pesquisa;

4.      O anticientificismo possibilita a adesão a teorias conspiratórias, inclusive, dissemina desinformações sobre a pandemia;

5.      O Tradicionalismo difere do fascismo e do nazismo porque esses eram futuristas e modernistas;

6.      Ele tem um programa de destruição das grandes organizações modernas como ONU, OMS, e uma transferência de culpa para o congresso e STF (em âmbito nacional);

7.      Ele crê ilusoriamente que todas as grandes instituições e regimes estão a favor do fantasma do comunismo, daí a paranoia com a China;

8.      Segue uma lógica de destruição, mas não têm um projeto de substituição.

9.      E acrescento, apesar do entusiasmo de alguns tradicionalistas extremistas com o neoliberalismo. Eles se atrapalham nesta agenda. No fundo, estão mais preocupados com a segurança econômica de quem está no topo. Não há a crença no progresso!

 

O interessante desta análise que ela difere do discurso comum no Brasil que identifica a extrema-direita bolsonarista ao fascismo.

 

Referência:

 

TEITELBAUM, Benjamim. The Return of Traditionalism and the Rise of the Populist Right. Penguin, 2020.