DEUS
E AS ELEIÇÕES MUNICIPAIS
José
Aristides da Silva Gamito
Lamentavelmente, a cada
eleição aprendemos muito mais sobre o que não devemos ser do que sobre o que
devemos ser. Apesar de uma clara legislação contra compra de votos,
concorrência desleal e desrespeito à liberdade de escolha, muitos atos imorais
são cometidos durante as campanhas eleitorais. As eleições municipais de 2020
tiveram um marco ainda mais impactante: aprendemos que a disputa pelo poder
está acima da saúde e da vida. Em um tom jocoso, poderíamos dizer que se você
quiser “acabar” com uma pandemia, basta marcar umas eleições.
O
que é mais lamentável ainda é notar que depois de um show de imoralidades, os
candidatos eleitos ainda atribuem suas vitórias a Deus. Muitos cristãos que
participaram assiduamente de campanhas deveriam se lembrar do mandamento da
inefabilidade divina: “Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o
Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.” (Ex. 20,7). Mas o que
eles dão como resposta são argumentos de que Deus está em tudo e de que toda
autoridade é constituída por Deus. No fundo, este é uso abusivo da autoridade
de Deus para justificar processos totalmente humanos e repletos de vícios. É um
abuso pecaminoso do nome de Deus.
Há
algumas estatísticas que nos assustam. Segundo o IBGE, 86% dos brasileiros são
cristãos. Vivemos em um país marcado por uma tradição religiosa alicerçada em
valores como amor, justiça, verdade. No entanto, uma pesquisa de 2014 do TSE
levantou que 28% dos brasileiros já testemunharam ou tiveram conhecimento de
compra de votos. E mais! Em 2019, o Brasil atingiu 35 pontos no Índice de
Percepção da Corrupção da Transparência Internacional. Segundo este índice: 0 é
muito corrupto e 100 é muito íntegro. Portanto, estamos diante de uma grande contradição:
estamos diante de um país majoritariamente cristão, mas altamente corrupto na
esfera política.
A
ética cristã prevê muitos valores necessários para a política. Mas quando os
cristãos saem fazendo campanhas eleitorais, eles se esquecem disso. São
permissivos demais, abrem exceções e justificam todos os vícios. Por isso,
acabar com a corrupção é tão difícil. Os cidadãos altamente “politizados” ou
“partidarizados” tendem a enxergar corrupção somente no adversário. Falta
autocrítica. Vejam como existem tantas transgressões da ética cristã no
processo eleitoral:
a)
Contra
a corrupção e a compra de votos, há um mandamento “Não
furtarás.” (Ex. 20, 15). Os profetas do antigo Israel bradaram firmemente
contra o suborno: “O ímpio acerta o suborno em secreto, para perverter as
veredas da justiça” (Provérbios 17,23). “Ai dos que. justificam o ímpio por
suborno, e ao justo negam justiça” (Isaías 5, 22,23). Há cristão que não
percebe que comprar votos diretamente ou indiretamente, fraudar eleições, é
roubo.
b)
Contra
a concorrência desleal e o descumprimento da legislação, o
profeta Oseias critica aqueles que usam medidas fraudulentas nos negócios: “O
mercador tem balança enganadora em sua mão; ele ama a opressão” (Oséias 12,7).”
Não vale tudo para ganhar uma eleição, a honestidade e a transparência não
podem ser esquecidas.
c)
A
difamação e a calúnia dos concorrentes são contrárias ao
mandamento sobre a verdade e o respeito ao próximo: “Não darás falso testemunho
contra o teu próximo.” (Ex. 20, 16). “Não espalhem calúnias no meio do seu
povo. Não se levantem contra a vida do seu próximo” (Lev 19, 16). As fakenews e as difamações de período
eleitoral são falsos testemunhos. A mentira, muitas vezes, é usada como marketing eleitoral.
d)
Há incoerência de discursos e de valores para se encaixar no perfil do
candidato ou do partido. A omissão de fatos é utilizada para não trazer
desvantagem ao candidato. Lembre-se do que Jesus falou: “Seja o seu 'sim',
'sim', e o seu 'não', 'não'; o que passar disso vem do Maligno.” (Mt 5, 37).
e)
É um valor cristão respeitar o adversário e evitar provocações
e rivalidades desnecessárias. A ética cristã é muito rigorosa e começa por
proibir pequenos xingamentos: “Mas eu digo: Amem os seus inimigos e orem por
aqueles que os perseguem,” (Mt 5,44). Há tantas expressões imaturas utilizadas
para provocar adversários como “fumo”, “o choro é livre”, “pode chorar”. Jesus
se expressa claramente contra isso: “Também, qualquer que disser a seu irmão:
'Racá', será levado ao tribunal. E qualquer que disser: ‘Louco!’, corre o risco
de ir para o fogo do inferno.” (Mt 5, 22).
f)
O esquecimento maldoso da pandemia para facilitar as aglomerações de
campanha também é contra a ética. Medidas profiláticas não são invenção de
hoje. O Levítico 13 prescreve o isolamento social para evitar contágio de lepra
por 14 dias (Lev 13, 2-5); inclui o uso de uma proteção da parte inferior do
rosto (Lev 13, 45). O cuidado com a saúde coletiva é um dever da ética cristã.
Jesus garante: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham plenamente” (Jo.
10,10).
Portanto,
há uma distância entre prática política e ética cristã. E isso nós estamos
cobrando de cristãos na política. Quem não é cristão tem outras fontes de valor
moral. A justificação permissiva, desleixada de comportamentos durante o
período eleitoral favorece a corrupção e aponta um problema muito grave para o
cristianismo: a hipocrisia religiosa. Enfim, o que devemos a Deus nestas
eleições é um grande pedido de perdão!
*Texto
para o bate-papo da live (transmissão ao vivo pelo facebook) de 24/11/2020 com
uma conversa entre José Aristides e Pablo Martins sobre: “Uma avaliação pós-eleições:
ética cristã e o processo eleitoral”.