terça-feira, 24 de novembro de 2020

Deus e as eleições municipais

 


DEUS E AS ELEIÇÕES MUNICIPAIS

 

José Aristides da Silva Gamito

 

Lamentavelmente, a cada eleição aprendemos muito mais sobre o que não devemos ser do que sobre o que devemos ser. Apesar de uma clara legislação contra compra de votos, concorrência desleal e desrespeito à liberdade de escolha, muitos atos imorais são cometidos durante as campanhas eleitorais. As eleições municipais de 2020 tiveram um marco ainda mais impactante: aprendemos que a disputa pelo poder está acima da saúde e da vida. Em um tom jocoso, poderíamos dizer que se você quiser “acabar” com uma pandemia, basta marcar umas eleições.

O que é mais lamentável ainda é notar que depois de um show de imoralidades, os candidatos eleitos ainda atribuem suas vitórias a Deus. Muitos cristãos que participaram assiduamente de campanhas deveriam se lembrar do mandamento da inefabilidade divina: “Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.” (Ex. 20,7). Mas o que eles dão como resposta são argumentos de que Deus está em tudo e de que toda autoridade é constituída por Deus. No fundo, este é uso abusivo da autoridade de Deus para justificar processos totalmente humanos e repletos de vícios. É um abuso pecaminoso do nome de Deus.

Há algumas estatísticas que nos assustam. Segundo o IBGE, 86% dos brasileiros são cristãos. Vivemos em um país marcado por uma tradição religiosa alicerçada em valores como amor, justiça, verdade. No entanto, uma pesquisa de 2014 do TSE levantou que 28% dos brasileiros já testemunharam ou tiveram conhecimento de compra de votos. E mais! Em 2019, o Brasil atingiu 35 pontos no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional. Segundo este índice: 0 é muito corrupto e 100 é muito íntegro. Portanto, estamos diante de uma grande contradição: estamos diante de um país majoritariamente cristão, mas altamente corrupto na esfera política.

A ética cristã prevê muitos valores necessários para a política. Mas quando os cristãos saem fazendo campanhas eleitorais, eles se esquecem disso. São permissivos demais, abrem exceções e justificam todos os vícios. Por isso, acabar com a corrupção é tão difícil. Os cidadãos altamente “politizados” ou “partidarizados” tendem a enxergar corrupção somente no adversário. Falta autocrítica. Vejam como existem tantas transgressões da ética cristã no processo eleitoral:

a)                Contra a corrupção e a compra de votos, há um mandamento “Não furtarás.” (Ex. 20, 15). Os profetas do antigo Israel bradaram firmemente contra o suborno: “O ímpio acerta o suborno em secreto, para perverter as veredas da justiça” (Provérbios 17,23). “Ai dos que. justificam o ímpio por suborno, e ao justo negam justiça” (Isaías 5, 22,23). Há cristão que não percebe que comprar votos diretamente ou indiretamente, fraudar eleições, é roubo.

b)               Contra a concorrência desleal e o descumprimento da legislação, o profeta Oseias critica aqueles que usam medidas fraudulentas nos negócios: “O mercador tem balança enganadora em sua mão; ele ama a opressão” (Oséias 12,7).” Não vale tudo para ganhar uma eleição, a honestidade e a transparência não podem ser esquecidas.

c)                 A difamação e a calúnia dos concorrentes são contrárias ao mandamento sobre a verdade e o respeito ao próximo: “Não darás falso testemunho contra o teu próximo.” (Ex. 20, 16). “Não espalhem calúnias no meio do seu povo. Não se levantem contra a vida do seu próximo” (Lev 19, 16). As fakenews e as difamações de período eleitoral são falsos testemunhos. A mentira, muitas vezes, é usada como marketing eleitoral.

d)               incoerência de discursos e de valores para se encaixar no perfil do candidato ou do partido. A omissão de fatos é utilizada para não trazer desvantagem ao candidato. Lembre-se do que Jesus falou: “Seja o seu 'sim', 'sim', e o seu 'não', 'não'; o que passar disso vem do Maligno.” (Mt 5, 37).

e)                 É um valor cristão respeitar o adversário e evitar provocações e rivalidades desnecessárias. A ética cristã é muito rigorosa e começa por proibir pequenos xingamentos: “Mas eu digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem,” (Mt 5,44). Há tantas expressões imaturas utilizadas para provocar adversários como “fumo”, “o choro é livre”, “pode chorar”. Jesus se expressa claramente contra isso: “Também, qualquer que disser a seu irmão: 'Racá', será levado ao tribunal. E qualquer que disser: ‘Louco!’, corre o risco de ir para o fogo do inferno.” (Mt 5, 22).

f)   O esquecimento maldoso da pandemia para facilitar as aglomerações de campanha também é contra a ética. Medidas profiláticas não são invenção de hoje. O Levítico 13 prescreve o isolamento social para evitar contágio de lepra por 14 dias (Lev 13, 2-5); inclui o uso de uma proteção da parte inferior do rosto (Lev 13, 45). O cuidado com a saúde coletiva é um dever da ética cristã. Jesus garante: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham plenamente” (Jo. 10,10).

Portanto, há uma distância entre prática política e ética cristã. E isso nós estamos cobrando de cristãos na política. Quem não é cristão tem outras fontes de valor moral. A justificação permissiva, desleixada de comportamentos durante o período eleitoral favorece a corrupção e aponta um problema muito grave para o cristianismo: a hipocrisia religiosa. Enfim, o que devemos a Deus nestas eleições é um grande pedido de perdão!

 

*Texto para o bate-papo da live (transmissão ao vivo pelo facebook) de 24/11/2020 com uma conversa entre José Aristides e Pablo Martins sobre: “Uma avaliação pós-eleições: ética cristã e o processo eleitoral”.

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