sexta-feira, 24 de setembro de 2010

TCC

A CONDIÇÃO HUMANA EM KIERKEGAARD[1]

José Aristides da Silva

INTRODUÇÃO

Dentre os diversos temas da filosofia de Kierkegaard, escolhi para o presente trabalho a condição humana, na sua dupla situação de liberdade e de sofrimento. O rosto humano aqui é apresentado sem reservas, demonstrando todas as riquezas de suas faculdades, incluindo a possibilidade do fracasso e da morte. O que mais temos dificuldade de assumir.

A concepção de homem na filosofia kierkegaardiana nos lança um desafio: ousarmos a ser nós mesmos. Correndo todos os riscos, mesmo quando este risco é o risco do fracasso. Pois, não existe eu autêntico sem assumir esta condição: ser a si próprio, reconhecer-se como dependente do poder que o pôs.

Søren Kierkegaard é um dos mais violentos opositores de Hegel. Ele critica o hegelianismo por priorizar o universal em detrimento do singular. O universal é racional, abstrato,eterno e devorador do indivíduo, é apenas a abstração do singular. Só o singular é o existente. Partindo deste princípio o filósofo toma para si a missão de valorizar o singular. Este para Kierkagaard é o homem.

A existência humana é compreendida na categoria da possibilidade. Todas as possibilidades são possibilidades de sim e de não. Tudo está sob a ameaça do nada. Através desta condição o homem se relaciona com o mundo, desta instabilidade nasce a angústia. Desta, ele tem como saídas o suicídio ou a fé (aceitação de sua condição). A existência autêntica passa pelo assumir a sua condição e a sua identidade.

Em relação a si mesmo o homem experimenta o desespero. Porque ele pode querer ou não querer ser a si próprio. Assumir a subjetividade é tarefa difícil. O homem é uma síntese de finito e infinito. Ele deve procurar um equilíbrio entre esses dois pólos. Corre duplo risco: pelo infinito corre o risco de se perder no imaginário e pelo finito, no fechamento. Este dilema de ser ou não, põe o indivíduo na condição de desesperado. Aqui a saída é a aceitação de sua identidade de dependente e limitado.

A situação humana em kierkegaard é um dilema, que só pode solucionado pela fé. O filósofo resgata o homem do universalismo abstrato. Valoriza a sua existência no seu aspecto de finitude, incluindo o sofrimento, na sua dupla patologia: a angústia e o desespero. A filosofia kierkegaardiana salva o homem das garras dos sistemas, ao priorizar o indivíduo como abertura para as possibilidades, dotado de liberdade e caracterizado por sua individualidade inalienável.

CAPÍTULO I -

EXISTÊNCIA E SINGULARIDADE

Kierkegaard se opõe a Hegel com uma crítica feroz. Pois, este coloca a verdadeira realidade no universal. Não há espaço para o singular. A realidade é o existente.

O singular é a categoria do existente. A mais perfeita determinação da realidade, como coisa individual, existente aqui e agora. O universal não existe, é apenas uma abstração do singular. Este singular é o singular-homem. Na espécie humana o indivíduo é superior à espécie. O animal é o reino da necessidade, já o homem é o reino da possibilidade. Tem como característica principal a abertura. Portanto, ele é o único que tem consciência de sua singularidade.

Kierkegaard toma a sério o singular, que propõe para si a missão de valorizá-lo. Toda a sua obra e a sua vida gira em torno da singularidade e da luta para conquistá-la. Movido por esta paixão, promove ataques a Hegel e contra toda forma de sistema que tenta abstrair e apreender o existente. Para ele a existência se nega ao pensamento. Ela é mundo aberto não-apreensível por sistemas racionais. A vida do existente é marcada por escolhas e alternativas. No seio delas está incluído o sofrimento e o irracional.

O sistema não dá conta da realidade, ele é abstrato, racional, eterno e impassível, enquanto a realidade é concreta, irracional, efêmera e emocional. O sistema generaliza, universaliza, embriaga a realidade, não pode dizer nada sobre a condição humana e sobre todo sobre o seu sofrimento.

Na época de Kierkegaard, todos os ambientes acadêmicos estavam impregnados de hegelianismo. Numa ampla reação contra o universalismo que devorava o singular, o filósofo resgata o indivíduo. Inclui uma concepção de verdade subjetiva. A verdade é subjetividade, adequação da coisa ao indivíduo. Kierkegaard se opõe a toda forma de anonimato principalmente a confiança no comunismo, dizendo que a igualdade não é possível, pois a diferenciação é própria da natureza.

A singularidade é uma conquista difícil. A maioria dos eus se transforma numa terceira pessoa genérica. Agem através de um outro impessoal e universal. O eu diante do mundo e de si mesmo luta contra as tendências de universalização, produção de sistemas. O ato de ser um eu é marcado por luta e sofrimento. Isso só pode ser feito na liberdade. Nesta, o eu se acha diante de escolhas: escolha de si mesmo e dos fatos1.

A vida humana é abertura, reino da possibilidade. Surge no homem um grande dilema: ser ou não-ser. A relação do homem com o mundo é angústia e consigo mesmo é desespero.

CAPÍTULO II -

EXISTÊNCIA E POSSIBILIDADE

Kierkegaard conduz toda a compreensão humana na categoria da possibilidade. Ele a coloca como a mais pesada das categorias. A existência como possibilidade gera a incerteza, a instabilidade e a dúvida. A possibilidade não se refere a algo determinado, preciso. O homem vive no mundo numa dimensão de futuro. As possibilidades não têm garantia de realização. Por ilusão elas se apresentam como possibilidades agradáveis. Não têm garantia e sempre ocultam a alternativa do fracasso e da morte.

Uma possibilidade favorável não tem maior segurança do que uma possibilidade desastrosa. Diante disso, o homem reconhece a inutilidade da habilidade e só tem dois caminhos: o suicídio e a fé. A condição humana está sempre ligada à ameaça imanente, tudo está sob o signo da ameaça. A ameaça do nada. O nosso filósofo evidencia o aspecto negativo da possibilidade. Todas as possibilidades são possibilidades-de-sim e possibilidades-de-não.

O homem é uma “cobaia” da existência, reúne em si os pontos extremos de toda a oposição. Uma indeterminação permanente que se abre a qualquer possibilidade. Na qual falta um objetivo preciso, uma unidade e um centro no eu. Tudo é igualmente possível.

Kierkegaard acentua a indeterminação do possível. O possível não se torna necessário ao se realizar. O passado não é necessário no momento que devém. Ele se baseia na noção de possibilidade objetiva e indeterminada. A condição de possibilidade constitutiva do homem gera nele a angústia. Ela nasce da sua relação com o mundo (os fatos)2.

CAPÍTULO III -

ANGÚSTIA: RELAÇÃO DO HOMEM COM O MUNDO

A angústia é o puro sentimento da possibilidade. Um sentimento de incerteza, de instabilidade, de ameaça e de dúvida. Ela é condição gerada no homem pela possibilidade. Não é nem necessidade, nem liberdade abstrata; é liberdade finita, limitada e manietada3.

A angústia se conecta ao possível, este corresponde completamente ao futuro. O passado só representa a angústia como possibilidade de repetição. A angústia está ligada ao que não é, mas poderia ser, o nada possível ou a possibilidade do nada. Ela desaparece na espiritualidade. Mas está sempre pronta a surgir4.

A angústia é parte essencial da espiritualidade do homem. A espiritualidade é a reflexão dele sobre si próprio, sobre a sua condição. A consciência de morte é parte essencial dessa espiritualidade. Portanto, é a mais terrível de todas as categorias. A angústia está ligada ao princípio de infinidade do possível. Segundo este princípio, toda possibilidade favorável é destruída pelo infinito número de possibilidades desfavoráveis.

O homem de espiritualidade débil tenta esconder a angústia. A existência autêntica não passa pelo suicídio, mas pela fé. É necessário aprender na escola da possibilidade. O homem educado nela, compreende a sua condição, não pretende nada de absoluto na vida, tem consciência de que a perdição mora ao lado. Ele compreende acima de tudo que toda realidade por mais pesada que seja, é mais fácil do que a possibilidade. A angústia torna-se insuperável pela infinitude, mas o homem é abertura, quando compreende bem chega à aceitação de sua condição no mundo.

CAPÍTULO IV -

DESESPERO: RELAÇÃO DO HOMEM CONSIGO

Diante desta condição de instabilidade, o homem deve fazer uma escolha de si próprio. Como foi supracitado, assumir a singularidade é uma tarefa árdua. O fundo dessa escolha é a liberdade. O homem escolhe a sua história, a sua ligação com os outros, isto inclui riquezas, mas também, o sofrimento. Ele, em relação a si próprio, experimenta o desespero5.

O homem é uma síntese de finito e de infinito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade. É uma relação consigo próprio, se ele a conhece, o eu emerge. Esta relação se orienta sobre si mesmo, para a própria interioridade. A questão é a escolha ou não desta relação.

Na relação consigo, o eu pode querer ou não querer ser ele próprio, por ser limitado não alcançará o repouso. Ao não ser ele próprio, tenta quebrar a relação consigo, batendo numa impossibilidade fundamental. O desespero é a doença própria da personalidade humana e que a torna incapaz de realizar-se. Uma doença mortal, porque se vive a morte do eu. É a tentativa impossível de negar a possibilidade do eu.

As duas formas do desespero: desesperar de si, querer desfazer-se, querer ser o que não é, e querer desesperadamente ser o próprio eu a todo o custo. É querer ser um eu auto-suficiente. Em ambas as formas, o desespero é a impossibilidade da tentativa. O eu é síntese de liberdade e de necessidade. O desespero nasce dele. A deficiência da necessidade é a fuga do eu para possibilidades infinitas irrealizáveis. O desespero se deve à deficiência do possível. A possibilidade é o único remédio do desespero.

A superioridade do homem sobre o animal está na suscetibilidade de se desesperar. Sofrer o desespero é sublimidade. Ele é a doença mortal que não leva à morte, e a tortura está na impossibilidade de morrer. A morte para o desesperado seria a última esperança.

O desespero é universal, todo homem tem no mundo uma inquietação. Mas pode haver o caso de o indivíduo dizer-se desesperado e não o ser, assim pode haver o caso de o ser e negar. O desespero é a inconsciência que o homem tem do seu destino espiritual.

A saída do desespero está na aceitação da relação do eu consigo. A fé consiste na eliminação total do desespero, reconhecimento da dependência e a saída da auto-suficiência. Pela fé e pela a aceitação de seu autor, o homem sai do desespero6.

CAPÍTULO V -

O HOMEM E A EXISTÊNCIA AUTÊNTICA

A condição humana no pensamento de Kierkegaard é um dilema. São dois pólos que constituem a existência humana: infinitude e finitude. O homem vive no reino da possibilidade, abertura aos projetos e até a negação de si mesmo, mas é finito e limitado. Esta síntese põe o homem em duplo conflito, em relação a si mesmo e ao mundo.

Kierkegaard provoca a emergência do sujeito no meio desta bipolaridade. Através da espiritualidade o homem pode assumir essa relação. Uma relação difícil marcada duplamente pela angústia e pelo desespero. O existente entra em evidência, diferentemente dos sistemas que escondem a situação de desgraça do ser humano. O sistema hegeliano é muito abstrato, não possibilita tocar o indivíduo. Aliás, nele o indivíduo está sufocado.

Kierkegaard trata do homem sem prejuízo de sua singularidade. A existência autêntica está na aceitação e no assumir a condição limitada do eu em relação a si e em relação ao mundo. Um eu de uma limitação mergulhada na possibilidade. Esta condição é tão sublime que ele vive ameaçado pela sua riqueza.

O grande apelo kierkegaardiano é ousar a ser nós mesmos. A ameaça do nada desaparece, quando o eu mergulhando em si mesmo, toma consciência de seu destino espiritual e assume a sua dependência do poder que o pôs na existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho apresentado mostrou a contribuição de Kierkegaard para as bases de lançamento do existencialismo. O aspecto aqui salientado trouxe à reflexão a emergência do indivíduo devorado pelo hegelianismo. O humanismo nessa filosofia é calcado na existência real e singular do homem, e ainda orientado pela fé. Acima de tudo evidencia os riscos da existência, negligenciados pelos sistemas racionais. Enfim, percebemos que o homem aqui é o mais real possível.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, NICOLA, História da Filosofia. Vol.X, Ed. Presença

___________________,Dicionário de Filosofia, Martins Fontes

CHÂTELET, FRANÇOIS, História da Filosofia, vol.V, Zahar Ed.

DALLE NOGARE, PEDRO, Humanismos e Anti-humanismos, Ed.Vozes

KIERKEGAARD, SØREN, O Desespero Humano, Abril Cultural

REALE, GIOVANNI, História da Filosofia,vol.III, Paulus.


Notas:

1 Dalle Nogare, Pedro, Humanismos e Anti-humanismos, págs.129-140.

2 Abbagnano, Nicola, História da Filocofia, pág.60.

3 Châtelet, François, História da Filosofia, vol.V, pág.245-247.

4 Reale, Giovanni, História da Filosofia, vol. III, págs.245-247.

5 Abbagnano, Nicola, Dicionário de Filosofia, pág.240.

6 Kierkegaard, Søren, O Desepero Humano, pág.340-343.


[1] Artigo de Conclusão de curso apresentado ao Instituto de Filosofia e Teologia de Caratinga (ITEOFIC), Seminário Diocesano Nossa Senhora do Rosário, como requisito para conclusão do curso de Filosofia. Orientador: Prof. Henrique Xavier, Caratinga, 2010.

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