domingo, 27 de dezembro de 2020

O tradicionalismo e a extrema-direita

 

ALGUMAS QUESTÕES SOBRE O TRADICIONALISMO SEGUNDO

BENJAMIN TEITELBAUM

 


Segundo a análise de Benjamin Teitelbaum, tradicionalismo é uma escola eclética espiritual e filosófica de alguns séculos. O tradicionalista entende que a melhor vida é a do passado. Então, procura retroceder no tempo para encontrar conceitos, valores e costumes para pautar sua vida. Os tradicionalistas da extrema-direita rejeitam modernidade. A modernidade é centrada na ideia de progresso e na liberdade e igualdade entre os seres humanos. Os tradicionalistas são contrários a tudo que deriva dessa premissa.

Eles não lidam com a ideia de mudanças no tempo e acreditam em verdades transcendentes. São contrários a possibilidade de progresso, defendem apenas estilos de vida. Em termos políticos, são contrários ao conceito moderno de Estado. É interessante que, apesar de defensores de crenças cristãs, podem ser até anticristãos em alguns aspectos. São mais favoráveis a uma religião hegemônica e predominante. Segundo Teitelbaum, eles elogiavam até alguns aspectos do islamismo. O professor relaciona o movimento a René Guénon. Seu conceito de Tradição era eclético.

Teitelbaum afilia a ideologia de Donald Trump/ Steve Bannon, Jair Bolsonaro/Olavo de Carvalho ao Tradicionalismo. Em síntese, eis algumas características apontadas pelo pesquisador e às quais faço algumas aplicações:

 

1.      O Tradicionalismo quer restaurar uma ordem e uma hierarquia cujo topo é representando por cristãos brancos, heterossexuais. Portanto, é antifeminista, pró-racista, diminuidor do espaço das minorias;

2.      É antiprogressista - o Tradicionalismo quer regredir a sociedade a alguns séculos antes e quer retoma a moral cristã medieval e a hegemonia do cristianismo;

3.      É cético em relação à ciência e por isso desestimula a pesquisa;

4.      O anticientificismo possibilita a adesão a teorias conspiratórias, inclusive, dissemina desinformações sobre a pandemia;

5.      O Tradicionalismo difere do fascismo e do nazismo porque esses eram futuristas e modernistas;

6.      Ele tem um programa de destruição das grandes organizações modernas como ONU, OMS, e uma transferência de culpa para o congresso e STF (em âmbito nacional);

7.      Ele crê ilusoriamente que todas as grandes instituições e regimes estão a favor do fantasma do comunismo, daí a paranoia com a China;

8.      Segue uma lógica de destruição, mas não têm um projeto de substituição.

9.      E acrescento, apesar do entusiasmo de alguns tradicionalistas extremistas com o neoliberalismo. Eles se atrapalham nesta agenda. No fundo, estão mais preocupados com a segurança econômica de quem está no topo. Não há a crença no progresso!

 

O interessante desta análise que ela difere do discurso comum no Brasil que identifica a extrema-direita bolsonarista ao fascismo.

 

Referência:

 

TEITELBAUM, Benjamim. The Return of Traditionalism and the Rise of the Populist Right. Penguin, 2020.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Deus e as eleições municipais

 


DEUS E AS ELEIÇÕES MUNICIPAIS

 

José Aristides da Silva Gamito

 

Lamentavelmente, a cada eleição aprendemos muito mais sobre o que não devemos ser do que sobre o que devemos ser. Apesar de uma clara legislação contra compra de votos, concorrência desleal e desrespeito à liberdade de escolha, muitos atos imorais são cometidos durante as campanhas eleitorais. As eleições municipais de 2020 tiveram um marco ainda mais impactante: aprendemos que a disputa pelo poder está acima da saúde e da vida. Em um tom jocoso, poderíamos dizer que se você quiser “acabar” com uma pandemia, basta marcar umas eleições.

O que é mais lamentável ainda é notar que depois de um show de imoralidades, os candidatos eleitos ainda atribuem suas vitórias a Deus. Muitos cristãos que participaram assiduamente de campanhas deveriam se lembrar do mandamento da inefabilidade divina: “Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.” (Ex. 20,7). Mas o que eles dão como resposta são argumentos de que Deus está em tudo e de que toda autoridade é constituída por Deus. No fundo, este é uso abusivo da autoridade de Deus para justificar processos totalmente humanos e repletos de vícios. É um abuso pecaminoso do nome de Deus.

Há algumas estatísticas que nos assustam. Segundo o IBGE, 86% dos brasileiros são cristãos. Vivemos em um país marcado por uma tradição religiosa alicerçada em valores como amor, justiça, verdade. No entanto, uma pesquisa de 2014 do TSE levantou que 28% dos brasileiros já testemunharam ou tiveram conhecimento de compra de votos. E mais! Em 2019, o Brasil atingiu 35 pontos no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional. Segundo este índice: 0 é muito corrupto e 100 é muito íntegro. Portanto, estamos diante de uma grande contradição: estamos diante de um país majoritariamente cristão, mas altamente corrupto na esfera política.

A ética cristã prevê muitos valores necessários para a política. Mas quando os cristãos saem fazendo campanhas eleitorais, eles se esquecem disso. São permissivos demais, abrem exceções e justificam todos os vícios. Por isso, acabar com a corrupção é tão difícil. Os cidadãos altamente “politizados” ou “partidarizados” tendem a enxergar corrupção somente no adversário. Falta autocrítica. Vejam como existem tantas transgressões da ética cristã no processo eleitoral:

a)                Contra a corrupção e a compra de votos, há um mandamento “Não furtarás.” (Ex. 20, 15). Os profetas do antigo Israel bradaram firmemente contra o suborno: “O ímpio acerta o suborno em secreto, para perverter as veredas da justiça” (Provérbios 17,23). “Ai dos que. justificam o ímpio por suborno, e ao justo negam justiça” (Isaías 5, 22,23). Há cristão que não percebe que comprar votos diretamente ou indiretamente, fraudar eleições, é roubo.

b)               Contra a concorrência desleal e o descumprimento da legislação, o profeta Oseias critica aqueles que usam medidas fraudulentas nos negócios: “O mercador tem balança enganadora em sua mão; ele ama a opressão” (Oséias 12,7).” Não vale tudo para ganhar uma eleição, a honestidade e a transparência não podem ser esquecidas.

c)                 A difamação e a calúnia dos concorrentes são contrárias ao mandamento sobre a verdade e o respeito ao próximo: “Não darás falso testemunho contra o teu próximo.” (Ex. 20, 16). “Não espalhem calúnias no meio do seu povo. Não se levantem contra a vida do seu próximo” (Lev 19, 16). As fakenews e as difamações de período eleitoral são falsos testemunhos. A mentira, muitas vezes, é usada como marketing eleitoral.

d)               incoerência de discursos e de valores para se encaixar no perfil do candidato ou do partido. A omissão de fatos é utilizada para não trazer desvantagem ao candidato. Lembre-se do que Jesus falou: “Seja o seu 'sim', 'sim', e o seu 'não', 'não'; o que passar disso vem do Maligno.” (Mt 5, 37).

e)                 É um valor cristão respeitar o adversário e evitar provocações e rivalidades desnecessárias. A ética cristã é muito rigorosa e começa por proibir pequenos xingamentos: “Mas eu digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem,” (Mt 5,44). Há tantas expressões imaturas utilizadas para provocar adversários como “fumo”, “o choro é livre”, “pode chorar”. Jesus se expressa claramente contra isso: “Também, qualquer que disser a seu irmão: 'Racá', será levado ao tribunal. E qualquer que disser: ‘Louco!’, corre o risco de ir para o fogo do inferno.” (Mt 5, 22).

f)   O esquecimento maldoso da pandemia para facilitar as aglomerações de campanha também é contra a ética. Medidas profiláticas não são invenção de hoje. O Levítico 13 prescreve o isolamento social para evitar contágio de lepra por 14 dias (Lev 13, 2-5); inclui o uso de uma proteção da parte inferior do rosto (Lev 13, 45). O cuidado com a saúde coletiva é um dever da ética cristã. Jesus garante: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham plenamente” (Jo. 10,10).

Portanto, há uma distância entre prática política e ética cristã. E isso nós estamos cobrando de cristãos na política. Quem não é cristão tem outras fontes de valor moral. A justificação permissiva, desleixada de comportamentos durante o período eleitoral favorece a corrupção e aponta um problema muito grave para o cristianismo: a hipocrisia religiosa. Enfim, o que devemos a Deus nestas eleições é um grande pedido de perdão!

 

*Texto para o bate-papo da live (transmissão ao vivo pelo facebook) de 24/11/2020 com uma conversa entre José Aristides e Pablo Martins sobre: “Uma avaliação pós-eleições: ética cristã e o processo eleitoral”.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Per sora nostra morte

 


PER SORA NOSTRA MORTE- A morte é o nosso maior medo e também a nossa maior certeza. Francisco de Assis assim a retratou no Cântico das Criaturas: “Louvado sejas, meu Senhor, /Por nossa irmã a Morte corporal, /Da qual homem algum pode escapar.” Nenhuma outra experiência se compara a essa! Ter um dia dedicado à memória dos mortos é fundamental. Isso cobre uma necessidade básica do ser: a vontade de perpetuar. Já que não podemos permanecer nesta vida para sempre, então, criamos ritos para valorizar aqueles que partiram. Quando for a nossa vez, outros vão se lembrar de nós. Deste modo, nossa memória perpetua. Várias culturas antigas se dedicavam à celebração dos mortos. Apesar de algumas resistências no seio do cristianismo, o culto da memória dos mortos permaneceu. Muitos cristãos contribuíram para um apagamento parcial desses costumes porque pensavam que relembrar os mortos era um rito pagão de evocação dos mortos. Há diferentes formas de celebrar a vida através da memória dos mortos. A forma propagada pelo cinema estadunidense em torno do Halloween criou uma estética mórbida das memórias dos mortos. A estética estereotipada do Halloween nos apresenta a morte como um terror que pode ser banalizado. O costume, mais fortemente cultivado pelo catolicismo, procura reverenciar a morte e fazer memória dos que partiram enfatizando a saudade, as boas lembranças. É uma estética da esperança.  É uma representação da morte que pode ser saudável. E precisamos recuperar a reverência à morte, temos enfraquecidos os ritos em torno da morte. Por exemplo, o velório tornou-se uma correria, um empecilho na vida da sociedade capitalista. Evitamos o envelhecimento e tratamos a morte como estatística. Enfim, dia 02 de novembro é um dia de reflexão sobre a nossa condição de finitude e como fruto desse exercício, nós esperamos a humildade como virtude a ser cultivada!

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Dom Paulo Mendes Peixoto reflete sobre as eleições municipais


 ELEIÇÕES 2020

 

Como tudo está mudado por causa da pandemia de corona vírus, as eleições municipais deste ano serão em novembro. Os candidatos já estão por aí batendo em nossas portas. É hora de encarar essa realidade bonita de cidadania com responsabilidade, com critérios humanos e dimensão cristã, porque política é a arte de construir o bem comum para favorecer a vida das pessoas.

O exercício da política precisa motivar as pessoas a assumir uma lógica fundamentada nos valores de Deus, incompatível com as hodiernas ações humanas. A lógica de Deus diz: “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mt 20,16). Não é a obsessão pelo poder que valoriza a pessoa, mas a sua capacidade de servir a população refugiado numa prática de humildade.

No dizer do Papa Francisco, “A boa política está a serviço da vida e da paz”, porque ela pode construir dignidade humana e bem comum. A missão não é só dos candidatos e dos eleitos, mas todas as pessoas precisam fazer alguma coisa. Continua Francisco ao afirmar que “um bom católico interfere na política, oferecendo seu melhor para que o governante possa governar”.

No exercício da política as pessoas precisam assimilar a maneira de pensar de Deus, com base nos ensinamentos de sua palavra. O compromisso democrático não significa apenas apertar os botões da urna eletrônica, mas acompanhar a ação realizada pelos eleitos cobrando deles atenção em relação às necessidades do povo, principalmente daqueles desprovidos do necessário para a vida.

O poder político não pode ser entendido como um privilégio, como espírito de competição e nem como cabide de emprego, mas serviço para todos indistintamente. É questão de cidadania e de submissão aos princípios da Constituição Federal, quando diz dos direitos e deveres de todas as pessoas no país. Os políticos têm a obrigação de desenvolver políticas públicas para o bem de todos.

Nesta próxima eleição escolheremos os candidatos que vão ocupar as vagas no Executivo e no Legislativo municipal. Portanto, eles são candidatos que estão muito próximos dos eleitores, precisam ser bem escolhidos e de forma transparente. Comprar e vender o voto são práticas irresponsáveis e prejudiciais para o Município, porque ganha quem não está preocupado com a boa política.

 

Dom Paulo Mendes Peixoto

Arcebispo de Uberaba.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Programação da Semana da Filósofa e do Filósofo

 

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Semana do Escritor


Abri ontem um ciclo de lives sobre temas culturais diversos. No dia 21/07, às 19 horas, vou conversar com o escritor mutuense Cláudio Antonio Mendes. Ele é professor de Ciências Biológicas na rede estadual de ensino de MG. Já publicou os seguintes livros: Uni Versos (poemas), O Homem e Suas Perdas (Indrisos), Decalogias Poéticas (Poemas). Está lançando Duas Noites de Vingança (Contos) Ed. WI e O Castelo de Alice (Contos), Ed. Darda. Participação: Prêmio Escambau de Microcontos e antologias diversas. Desenvolveu os projetos culturais: Diversos saraus promovidos por Escolas Estaduais; Café Literário promovido pela Secretaria Municipal de Cultura; Canjicada Literária:  Idealizada por mim e promovido pela Secretaria Municipal de Cultura. Ele escreve poemas, contos e crônicas. Aguardem!



Live 01: Língua Latina




LÍNGUA LATINA E CULTURA ROMANA

Pauta da Live de 14/07/2020

1 - A importância e as vantagens de aprender latim: A aprendizagem do latim possibilita compreender a cultura romana, entender a linguagem jurídica e científica, entender melhor questões morfológicas, etimológicas e ortográficas da língua portuguesa, entender como as línguas evoluem com o exemplo do grupo neolatino e serve propedêutica para as neolatinas.
2 – Onde aprender latim: Há diversos recursos para aprender latim em sites, O coral Tyrtarion gravou muitas adaptações musicais de textos clássicos. O músico Keith Massey criou versões latinas de canções natalinas. Mas existem materiais didáticos disponíveis em livrarias e na internet suficientes para aprender a língua. O mais famoso é o curso Latina per se Illustrata que tem como principal atração ser um ensino autointuitivo. O método de Orberg baseia-se na aprendizagem natural da língua. A editora Assimil prima pelo ensino do latim a partir de situações contemporâneas.

3 – Alguém usa o latim atualmente?   Há recursos que usam o latim como a Radiophonia Finnica Generalis que veicula notícias em latim pela rádio Yle; Os assuntos atuais são falados em latim com a atualização do vocabulário: A Opus Fundatum Latinitas é uma instituição do Vaticano promove a língua através de publicações, concursos e diversas oportunidades de prática. a instituição editou o Lexicon Latinitatis Recentis, um dicionário de neologismos latinos úteis para expressar coisas que não existiam no período clássico romano.

4 – O Português foi derivado do latim:  O português provém do latim, toda a nossa estrutura lingüística e terminologias são latinas. Estudar o latim é compreender a nossa cultura, a contribuição européia para a formação da identidade nacional. Do mesmo modo que devemos conhecer tupi para aprofundar a nossa base genuinamente brasileira. Assim como não posso deixar de mencionar a contribuição africana com suas línguas e que  são pouco divulgadas.

4 – A cultura romana e textos : o que herdamos deles como a literatura, o direito, a organização política e eclesiástica. A literatura latina do período clássico é muito rica. A filosofia têm também seus representantes do período imperial.

terça-feira, 24 de março de 2020

Deus está punindo a humanidade?


AS PANDEMIAS E O PROBLEMA DO MAL

José Aristides da Silva Gamito[1]

1.    Introdução

Estamos no início de 2020. Uma pandemia assola o mundo. Todos nós estamos apreensivos por sabermos que muitos estão infectados, sofrendo e morrendo. A cada dia o vírus SARS-COV-2 infecta mais pessoas. Diante de tantas notícias nos meios de comunicação, acabamos querendo saber as razões de tanto sofrimento. Diferentes pessoas propõem suas explicações. Existem algumas científicas, filosóficas e outras apocalípticas. Entendemos que diante do sofrimento as pessoas buscam respostas em muitos lugares. As Escrituras são a principal fonte de referência quando se trata de explicar a razão do mal. A partir daí esperamos uma relação entre Deus e o que está acontecendo.
No Antigo Testamento, as epidemias, guerras e fomes eram atribuídas à intervenção divina. Estes textos estão repletos de exemplos de catástrofes e de tragédias. E muitas vezes, as pessoas procuram explicação nestes textos porque elas se identificam com situações semelhantes. Até aí está tudo bem. Porém, quando o fundamentalismo religioso entra em ação, as pessoas de fé começam a interpretar tragédias atuais como eram interpretadas no antigo Israel. Com isso, começam a pregar situações apocalípticas e apontar teorias para a intervenção divina. Nestas situações, Deus aparece punindo toda a humanidade, incluindo culpados e inocentes, por causa de um comportamento blasfemo localizado.

2.    O tratamento da misericórdia e da justiça nos dois testamentos

Se você rolar as páginas das principais redes sociais, encontrará um tratamento apocalíptico para a pandemia de coronavírus. Todas estas interpretações podem ser resumidas dentro do problema do mal. Esta é uma expressão teológica ou da teodiceia. O problema do mal é uma tentativa de explicar a correlação entre a existência de um Deus bom e a existência do mal no mundo. É um problema para o qual filósofos e teólogos procuram dar diferentes respostas. Existem algumas até convincentes, mas nenhuma resolve totalmente a questão. Mas não é minha intenção discutira a fundo teodiceia neste texto.
As explicações mais comuns são as de que Deus está punindo a humanidade. Alguns internautas até sabem porque ele está punindo as pessoas com o coronavírus. Alguns exemplos: Algumas representações do Carnaval brasileiro nos últimos anos blasfemaram contra Deus. Uma pessoa transexual se vestiu de Jesus. Um grupo fez um filme insinuando que Jesus era homoafetivo. São reivindicadas punições para pecados, geralmente, de cunho sexual. Normalmente, corrupção política, desigualdade social etc não atraem punição divina no conceito destas pessoas. Parece que este Deus punitivo está preocupado só com sexualidade.
Portanto, a questão que se levanta é: Deus está punindo a humanidade com o coronavírus? Primeiramente, basta você tomar alguns trechos do Antigo Testamento que encontrará analogias para responder positivamente esta pergunta. Os fundamentalistas preferem estes textos que tratam da ira divina: dilúvio, o cativeiro do povo hebreu, as guerras contra Israel. Os antigos hebreus entendiam Deus de um modo antropomórfico e consideravam que a história era dirigida pela vontade divina. Se os israelitas conservassem a aliança com Deus tinha paz, mas se a quebrassem eram punidos com guerras, fomes e doenças. O conceito antropomórfico de Deus é aquela concepção que atribui sentimentos e emoções humanas a Deus.
No Novo Testamento, temos uma situação diferente. Se você ler os textos apocalípticos, dará um tratamento muito parecido para a questão. Eles não diferem muito da antiga concepção judaica da relação entre Deus e a humanidade. O Apocalipse está cheio de exemplos disso.  Mas se colocarmos este problema do mal na mentalidade de Jesus, qual seria a solução? As pessoas que fazem uma leitura fundamentalista da Bíblia defendem que Deus pune a humanidade porque é justo. A justiça no Antigo Testamento está vinculada à ira de Deus. Porém, nos evangelhos este conceito muda. A dificuldade do fundamentalista é estabelecer conexões entre estes textos. Ele não permite o uso da racionalidade para a interpretação bíblica. Portanto, aviso desde já que este meu texto não comunica com fundamentalistas.
Por que mudar este tratamento sobre o pecado e a justiça? Porque Jesus faz esta mudança. E ele é o intérprete por excelência das Escrituras. Esta deveria ser a máxima do cristão que lê a Bíblia. Porém, muitas vezes o leitor fundamentalista sobrepõe sua vontade ao texto. Apesar de Jesus dizer que não veio mudar a Lei, ele acaba operando uma mudança radical em sua compreensão: “Não penseis que eu vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17). Vide o tratamento que ele dá aos mandamentos depois desta afirmação (Mt 5, 21-48). Todo este comentário à Lei é introduzido pela antítese: “Ouvistes o que foi dito aos antigos... Eu, porém, vos digo” (Mt 5, 21-22). Aí está a chave hermenêutica do Antigo Testamento na ótica de Jesus.
Nos evangelhos, Jesus fala de misericórdia, mas também de justiça. A sua justiça tem o sentido de cumprimento da Lei além do dever. Mas ela não tem conotação de vingança como o conceito de “ira divina”. A respeito da relação com o próximo, ele pede para não xingá-lo, não matá-lo e tratar o inimigo com amor (Mt 5, 21-47). Neste sentido, quem cumpre a justiça da Lei, perdoa a todos os inimigos e ora por eles. É nesta contradição que reside a perfeição de Deus (Mt 5,48). Portanto, o conceito de divindade de Jesus ultrapassa os sentimentos e as emoções humanas.
O Deus de Jesus faz os fenômenos da natureza beneficiarem bons e maus, justos e injustos (Mt 5, 45). Ele alimenta os animais e ornamenta os vegetais (Mt 6, 25-34). Ele não é mau. Se seus filhos o pedem alguma coisa boa, ele não dará algo ruim em seu lugar (Mt 7, 7-11). Neste sentido, a vingança não faz parte da ação divina. Em Mt 25, você encontrará um texto que fala de punição individual segundo as ações de cada um. E todas elas estão relacionadas com a solidariedade com o próximo (Mt 25, 31-46). Um Deus bom não significa um Deus que aprova o pecado e a injustiça. Mas é um Deus que pensa como Deus e não como homem. Ele se compadece e ultrapassa o sentimento humano. Um autor mesmo do Antigo Testamento já reconhece que o antropomorfismo não é uma representação perfeita de Deus: “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos” (Is 55,8).
A confusão entre vingança e justiça é um grave pecado contra o mandamento: “Não pronunciarás em falso o nome de Iahweh teu Deus” (Ex 20,7). Se blasfemar através da arte é um pecado, mais blasfêmia ainda é dizer que Deus é mau, vingativo e que pune os inocentes. Portanto, o problema maior é pensar que por causa do comportamento de um grupo x toda a humanidade será punida, incluindo, as crianças inocentes e os idosos indefesos. O fundamentalismo carece de lógica, de bom senso e de senso mesmo de justiça. A sua justiça é totalmente desproporcional. O fundamentalista está preocupado em colecionar versículos que provem a vingança de Deus e chama-a de justiça. Ele tem dificuldade em aceitar que Deus é bom. Se alguém o critica, ele diz que está com a verdade da Bíblia, ou seja, a posição de versículos avulsos.
O fundamentalista torce a realidade para caber na sua cólera. Ele sempre dirá que os que morreram de coronavírus eram pecadores. Aqueles que se salvaram é porque tinham fé. Ele é o centro dos fenômenos e deveria como cristão se lembrar: “Não julgueis para não serdes julgados” (Mt 7,1). Mas ele julga sem ter condições de avaliar a conduta e a consciência de milhares de pessoas. As generalizações facilitam os juízos porque elas não têm compromisso em avaliar as variações, as exceções. Ele ignora a justiça de Jesus porque está apressado em condenar. O apressado deveria se lembrar do conselho de Tiago para que sejamos lentos na raiva porque a cólera do homem não é capaz de cumprir a justiça de Deus (Tg 1, 19-20).
A noção de justiça para Jesus está na contramão nossa e da interpretação da Lei de seu tempo. A parábola dos trabalhadores enviados à vinha é decisiva para esta questão (Mt 20, 1-16). O pai de família contrata pessoas em várias horas do dia e, à tarde, paga o mesmo salário para cada um. O reclamão acha esta atitude injusta. O pai de família pergunta se ele está com ciúme de ele ser bom. Há pessoas que têm ciúmes de Deus ser bom. Ele projeta a mesquinhez do seu coração na imagem de Deus. Então, pensa e quer que Deus aja como ele agiria.
Mas Deus pune o pecado dos maus nos inocentes? Em João 9, 1-12, os discípulos de Jesus lhe perguntaram se o cego tinha nascido com a deficiência porque seus pais tinham pecado.  Ele responde que nem ele e nem seus pais (Jo 9,3). Jesus não acreditava que os inocentes possam ser punidos por causa dos pecadores. Lucas reporta também uma situação na qual alguns galileus tinham morrido com a queda da Torre de Siloé. Jesus diz que aqueles que morreram daquela forma trágica não eram mais pecadores do que os outros. Portanto, Deus não age como nossa professora de 5ª série que deixava toda a turma de castigo por que não sabia quem era o culpado de roubar a caneta do coleguinha e vivia repetindo: “os justos pelos pecadores!”.

3.    Considerações finais

Portanto, concluímos que Deus é misericordioso, não é vingativo, ele não trata as faltas humanas como achamos que devem ser julgadas. Isto jamais significa que ele aprova o erro. Ele só não julga como julgamos. Este é o Deus da fé de Jesus Cristo.  A fé precisa de uma boa dose de razão. Os males têm causas naturais ou da ação humana. O vírus é uma causa natural que mal convivida pelo homem pode gerar tragédias. Quanto ao problema total sobre o mal, não temos respostas definitivas para isso. O que eu sei é que quem tenta pintar Deus muito vingativo, não entendeu Jesus. E acabam na pressa de julgar os pecados da humanidade, chamando de Deus de mau. É propaganda contra!
Precisamos saber distinguir as causas do mal. Existem situações que não entendemos ou não aceitamos, mas não temos como atribuir isto a Deus dentro de uma leitura cristã da Bíblia. Fora deste domínio semântico, outras abordagens são possíveis, é claro. Mas estou falando dentro do pensamento cristão. Além disso, a diversidade literária da Bíblia te dará resposta para várias posições. Contudo, se você está interpretando como cristão, a chave hermenêutica é a de Jesus.
O que esperamos das pessoas de fé neste tempo de pandemia é que elas usem a Bíblia para consolar e dar esperança àqueles que sofrem e que estão apreensivos. As leituras apocalípticas e de vingança só assustam as pessoas e fazem propaganda contra a imagem de Deus. E também não usem discursos fundamentalistas para atrapalhar o trabalho dos profissionais de saúde. Não seja profeta da desgraça! Enfim, lave as mãos, evite aglomerações e fique em casa!




[1] Filósofo e mestre em Ciências das Religiões. Autor do livro “O Evangelho de Tomé: A Outra Face de Jesus” (2020).

sábado, 21 de março de 2020

AS REPRESENTAÇÕES NEGATIVAS E COVID-19


Em tempos de crise, vamos buscar consolações na filosofia. Epicuro de Samos e Epicteto são filósofos da antiguidade que podem nos ajudar muito com seus conselhos morais.
Segundo Epicteto, “as coisas não inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas”. Em tempos de crise, devemos procurar manter uma opinião sobre os fatos que nos possibilitem encontrar a tranquilidade. A opinião que temos do sofrimento e da morte torna tudo mais difícil.

As coisas não inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas. Por exemplo a morte nada tem de terrível ou também a Sócrates teria se afigurado assim , m as é a opinião a respeito da morte de que ela é terrível que é terrível! Então, quando se nos apresentarem entraves ou nos inquietarmos ou nos afligirmos, jamais consideremos outra coisa a causa, senão nós mesmos isto é as nossas próprias opiniões.[1]

A opinião sobre um acontecimento faz toda a diferença. Existem muitas possibilidades sobre o futuro. Se você escolhe se preocupar com as possibilidades menos relevantes, comprometerá o cuidado com o momento. Portanto, procure pensar na possibilidade de que as coisas vão ocorrer bem e esteja firme para fazer o que é necessário no tempo preserve. O pensamento negativo sobre o futuro compromete nosso presente. Se superarmos as representações nocivas sobre os fatos, conseguiremos manter a nossa tranqüilidade.
Com o pensamento positivo, teremos mais condições de tomar nossos cuidados.De acordo com Epicuro, a vida feliz depende da prudência.[2] Ser prudente é prever os futuros danos e se antecipar no cuidado. Muitas vezes, para termos prazer no futuro, devemos renunciar algumas coisas. A prudência manda a gente prevenir. Não temos certeza do desenrolar das coisas, mas se agirmos com cautela, não teremos motivos para arrependimentos.

Sejamos prudentes, sem entrar em pânico! Fique casa. Cuide de sua higiene. Vai passar!



[1] EPICTETO. O Encheirídion de Epicteto.  São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2012, p. 19.
[2] EPICURO. Carta sobre a Felicidade. São Paulo: Editora UNESP, 2002. P. 45.