AS PANDEMIAS E O PROBLEMA DO MAL
José
Aristides da Silva Gamito
1. Introdução
Estamos no início de 2020. Uma pandemia assola o
mundo. Todos nós estamos apreensivos por sabermos que muitos estão infectados,
sofrendo e morrendo. A cada dia o vírus SARS-COV-2 infecta mais pessoas. Diante
de tantas notícias nos meios de comunicação, acabamos querendo saber as razões
de tanto sofrimento. Diferentes pessoas propõem suas explicações. Existem
algumas científicas, filosóficas e outras apocalípticas. Entendemos que diante
do sofrimento as pessoas buscam respostas em muitos lugares. As Escrituras são
a principal fonte de referência quando se trata de explicar a razão do mal. A
partir daí esperamos uma relação entre Deus e o que está acontecendo.
No Antigo Testamento, as epidemias, guerras e fomes
eram atribuídas à intervenção divina. Estes textos estão repletos de exemplos
de catástrofes e de tragédias. E muitas vezes, as pessoas procuram explicação
nestes textos porque elas se identificam com situações semelhantes. Até aí está
tudo bem. Porém, quando o fundamentalismo religioso entra em ação, as pessoas
de fé começam a interpretar tragédias atuais como eram interpretadas no antigo
Israel. Com isso, começam a pregar situações apocalípticas e apontar teorias
para a intervenção divina. Nestas situações, Deus aparece punindo toda a
humanidade, incluindo culpados e inocentes, por causa de um comportamento
blasfemo localizado.
2. O
tratamento da misericórdia e da justiça nos dois testamentos
Se você rolar as páginas das principais redes
sociais, encontrará um tratamento apocalíptico para a pandemia de coronavírus.
Todas estas interpretações podem ser resumidas dentro do problema do mal. Esta
é uma expressão teológica ou da teodiceia. O problema do mal é uma tentativa de
explicar a correlação entre a existência de um Deus bom e a existência do mal
no mundo. É um problema para o qual filósofos e teólogos procuram dar
diferentes respostas. Existem algumas até convincentes, mas nenhuma resolve
totalmente a questão. Mas não é minha intenção discutira a fundo teodiceia
neste texto.
As explicações mais comuns são as de que Deus está
punindo a humanidade. Alguns internautas até sabem porque ele está punindo as
pessoas com o coronavírus. Alguns exemplos: Algumas representações do Carnaval
brasileiro nos últimos anos blasfemaram contra Deus. Uma pessoa transexual se
vestiu de Jesus. Um grupo fez um filme insinuando que Jesus era homoafetivo. São
reivindicadas punições para pecados, geralmente, de cunho sexual. Normalmente,
corrupção política, desigualdade social etc não atraem punição divina no
conceito destas pessoas. Parece que este Deus punitivo está preocupado só com
sexualidade.
Portanto, a questão que se levanta é: Deus está punindo a humanidade com o
coronavírus? Primeiramente, basta você tomar alguns trechos do Antigo
Testamento que encontrará analogias para responder positivamente esta pergunta.
Os fundamentalistas preferem estes textos que tratam da ira divina: dilúvio, o
cativeiro do povo hebreu, as guerras contra Israel. Os antigos hebreus
entendiam Deus de um modo antropomórfico e consideravam que a história era
dirigida pela vontade divina. Se os israelitas conservassem a aliança com Deus
tinha paz, mas se a quebrassem eram punidos com guerras, fomes e doenças. O
conceito antropomórfico de Deus é aquela concepção que atribui sentimentos e
emoções humanas a Deus.
No Novo Testamento, temos uma situação diferente.
Se você ler os textos apocalípticos, dará um tratamento muito parecido para a
questão. Eles não diferem muito da antiga concepção judaica da relação entre
Deus e a humanidade. O Apocalipse está cheio de exemplos disso. Mas se
colocarmos este problema do mal na mentalidade de Jesus, qual seria a solução?
As pessoas que fazem uma leitura fundamentalista da Bíblia defendem que Deus
pune a humanidade porque é justo. A justiça no Antigo Testamento está vinculada
à ira de Deus. Porém, nos evangelhos este conceito muda. A dificuldade do
fundamentalista é estabelecer conexões entre estes textos. Ele não permite o
uso da racionalidade para a interpretação bíblica. Portanto, aviso desde já que
este meu texto não comunica com fundamentalistas.
Por que
mudar este tratamento sobre o pecado e a justiça? Porque Jesus faz esta mudança. E ele é o
intérprete por excelência das Escrituras. Esta deveria ser a máxima do cristão
que lê a Bíblia. Porém, muitas vezes o leitor fundamentalista sobrepõe sua
vontade ao texto. Apesar de Jesus dizer que não veio mudar a Lei, ele acaba
operando uma mudança radical em sua compreensão: “Não penseis que eu vim
revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno
cumprimento” (Mt 5,17). Vide o tratamento que ele dá aos mandamentos depois
desta afirmação (Mt 5, 21-48). Todo este comentário à Lei é introduzido pela
antítese: “Ouvistes o que foi dito aos antigos... Eu, porém, vos digo” (Mt 5,
21-22). Aí está a chave hermenêutica do Antigo Testamento na ótica de Jesus.
Nos evangelhos, Jesus fala de misericórdia, mas
também de justiça. A sua justiça tem o sentido de cumprimento da Lei além do
dever. Mas ela não tem conotação de vingança como o conceito de “ira divina”. A
respeito da relação com o próximo, ele pede para não xingá-lo, não matá-lo e
tratar o inimigo com amor (Mt 5, 21-47). Neste sentido, quem cumpre a justiça
da Lei, perdoa a todos os inimigos e ora por eles. É nesta contradição que
reside a perfeição de Deus (Mt 5,48). Portanto, o conceito de divindade de
Jesus ultrapassa os sentimentos e as emoções humanas.
O Deus de Jesus faz os fenômenos da natureza
beneficiarem bons e maus, justos e injustos (Mt 5, 45). Ele alimenta os animais
e ornamenta os vegetais (Mt 6, 25-34). Ele não é mau. Se seus filhos o pedem
alguma coisa boa, ele não dará algo ruim em seu lugar (Mt 7, 7-11). Neste
sentido, a vingança não faz parte da ação divina. Em Mt 25, você encontrará um
texto que fala de punição individual segundo as ações de cada um. E todas elas
estão relacionadas com a solidariedade com o próximo (Mt 25, 31-46). Um Deus
bom não significa um Deus que aprova o pecado e a injustiça. Mas é um Deus que
pensa como Deus e não como homem. Ele se compadece e ultrapassa o sentimento
humano. Um autor mesmo do Antigo Testamento já reconhece que o antropomorfismo
não é uma representação perfeita de Deus: “Porque os meus pensamentos não são
os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos” (Is 55,8).
A confusão entre vingança e justiça é um grave
pecado contra o mandamento: “Não pronunciarás em falso o nome de Iahweh teu Deus” (Ex 20,7). Se blasfemar
através da arte é um pecado, mais blasfêmia ainda é dizer que Deus é mau,
vingativo e que pune os inocentes. Portanto, o problema maior é pensar que por
causa do comportamento de um grupo x toda a humanidade será punida, incluindo, as
crianças inocentes e os idosos indefesos. O fundamentalismo carece de lógica,
de bom senso e de senso mesmo de justiça. A sua justiça é totalmente
desproporcional. O fundamentalista está preocupado em colecionar versículos que
provem a vingança de Deus e chama-a de justiça. Ele tem dificuldade em aceitar
que Deus é bom. Se alguém o critica, ele diz que está com a verdade da Bíblia, ou
seja, a posição de versículos avulsos.
O fundamentalista torce a realidade para caber na
sua cólera. Ele sempre dirá que os que morreram de coronavírus eram pecadores.
Aqueles que se salvaram é porque tinham fé. Ele é o centro dos fenômenos e
deveria como cristão se lembrar: “Não julgueis para não serdes julgados” (Mt
7,1). Mas ele julga sem ter condições de avaliar a conduta e a consciência de
milhares de pessoas. As generalizações facilitam os juízos porque elas não têm
compromisso em avaliar as variações, as exceções. Ele ignora a justiça de Jesus
porque está apressado em condenar. O apressado deveria se lembrar do conselho
de Tiago para que sejamos lentos na raiva porque a cólera do homem não é capaz
de cumprir a justiça de Deus (Tg 1, 19-20).
A noção de justiça para Jesus está na contramão
nossa e da interpretação da Lei de seu tempo. A parábola dos trabalhadores
enviados à vinha é decisiva para esta questão (Mt 20, 1-16). O pai de família
contrata pessoas em várias horas do dia e, à tarde, paga o mesmo salário para
cada um. O reclamão acha esta atitude injusta. O pai de família pergunta se ele
está com ciúme de ele ser bom. Há pessoas que têm ciúmes de Deus ser bom. Ele
projeta a mesquinhez do seu coração na imagem de Deus. Então, pensa e quer que Deus
aja como ele agiria.
Mas Deus pune
o pecado dos maus nos inocentes? Em
João 9, 1-12, os discípulos de Jesus lhe perguntaram se o cego tinha nascido
com a deficiência porque seus pais tinham pecado. Ele responde que nem ele e nem seus pais (Jo
9,3). Jesus não acreditava que os inocentes possam ser punidos por causa dos
pecadores. Lucas reporta também uma situação na qual alguns galileus tinham
morrido com a queda da Torre de Siloé. Jesus diz que aqueles que morreram
daquela forma trágica não eram mais pecadores do que os outros. Portanto, Deus
não age como nossa professora de 5ª série que deixava toda a turma de castigo
por que não sabia quem era o culpado de roubar a caneta do coleguinha e vivia
repetindo: “os justos pelos pecadores!”.
3. Considerações
finais
Portanto, concluímos que Deus é misericordioso, não
é vingativo, ele não trata as faltas humanas como achamos que devem ser
julgadas. Isto jamais significa que ele aprova o erro. Ele só não julga como
julgamos. Este é o Deus da fé de Jesus Cristo. A fé precisa de uma boa dose de razão. Os
males têm causas naturais ou da ação humana. O vírus é uma causa natural que
mal convivida pelo homem pode gerar tragédias. Quanto ao problema total sobre o
mal, não temos respostas definitivas para isso. O que eu sei é que quem tenta
pintar Deus muito vingativo, não entendeu Jesus. E acabam na pressa de julgar
os pecados da humanidade, chamando de Deus de mau. É propaganda contra!
Precisamos saber distinguir as causas do mal.
Existem situações que não entendemos ou não aceitamos, mas não temos como
atribuir isto a Deus dentro de uma leitura cristã da Bíblia. Fora deste domínio
semântico, outras abordagens são possíveis, é claro. Mas estou falando dentro
do pensamento cristão. Além disso, a diversidade literária da Bíblia te dará
resposta para várias posições. Contudo, se você está interpretando como cristão,
a chave hermenêutica é a de Jesus.
O que esperamos das pessoas de fé neste tempo de
pandemia é que elas usem a Bíblia para consolar e dar esperança àqueles que sofrem
e que estão apreensivos. As leituras apocalípticas e de vingança só assustam as
pessoas e fazem propaganda contra a imagem de Deus. E também não usem discursos
fundamentalistas para atrapalhar o trabalho dos profissionais de saúde. Não
seja profeta da desgraça! Enfim, lave as
mãos, evite aglomerações e fique em casa!