A
TEOLOGIA E A CONDIÇÃO DAS PESSOAS HOMOAFETIVAS
“Sede
misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Mt 6, 36)
Introdução
Considerando
o constante embate entre cristãos sobre se a homoafetividade é uma
condição pecaminosa ou não, desenvolvi este artigo como
contribuição ao debate. Primeiro, iremos levantar os textos
bíblicos que falam sobre o assunto. Antes de tudo, é importante
lembrar que a moral bíblica, é na verdade, um conjunto de
orientações morais, desenvolvidas em tempos e lugares diferentes.
Há uma lenta evolução, há ambiguidades, mudanças de opinião, há
concordâncias. Acima de tudo, é um processo complexo que exige
leitura e análise atentas. São culturas e épocas distintas das
nossas. Não somos herdeiros diretos dos antigos judeus. A herança
veio até nós através de vários séculos, mediada por gregos e
romanos.
A
condenação da homoafetividade nos textos legislativos
vétero-testamentários
Os
textos vétero-testamentários classificam a prática homossexual
como abominação. São textos produzidos dentro de um contexto
patriarcal, poligâmico (às vezes), que via o sexo como prática
exclusiva para a procriação. A distinção entre o 'macho' e a
'fêmea' está explícita no Gênesis e sua função procriadora como
parte da vontade divina. É uma ideia-chave para entender a
mentalidade condenatória dos homossexuais nesses textos.
“Com
varão não te deitarás, como se fosse mulher: é abominação”
(Lv 18.22). “Quando também um homem se deitar com outro homem como
com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão; o seu
sangue é sobre eles” (Lv 20.13).
Os
textos afirmaram claramente que os atos homossexuais são
condenáveis. Mas se referem exclusivamente à prática masculina. É
um cultura androcêntrica. Os pecados são direcionados quase
exclusivamente aos homens. O homem não poderia ter relações com
alguém que não pudesse procriar. A cultura dos hebreus naquela
época entendia o sexo desse modo. Por isso mesmo, que as mulheres
estéreis eram criticadas. O texto prevê pena de morte ao
homoafetivo. Ainda não vimos os defensores desses textos cumprirem
literalmente a Bíblia, porque não matam as pessoas homoafetivas que
conhecem. Prova de que admitem que o contexto de hoje é diferente,
temos outra compreensão sobre o direito das pessoas. Ou seja, a
moral evolui ao longo do tempo.
O
posicionamento dos textos neo-testamentários
Em
1 Coríntios 6, 10 há uma condenação:
“Não
erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os
efeminados,
nem os sodomitas,
nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os
maldizentes, nem os roubadores herdarão o Reino de Deus”. No
texto, aparecem duas palavras da língua grega para designar o
comportamento em discussão malakos
(efeminado)
e
arsenokoites
(homossexual). A prática homossexual é considerada um vício e
classificada na mesma categoria do furto, da avareza e da embriaguez.
Está tudo misturado. A nossa compreensão hoje não é a mesma. Por
exemplo, embriaguez, como um ato isolado, pode ser considerada um
vício moral. Mas quem se entrega constantemente, hoje é considerado
como um doente. Do mesmo modo, o ato homossexual era visto como algo
isolado da personalidade e da constituição psíquica da pessoa. Não
se tinha ideia que era algo mais complexo, independente de escolhas.
A
Carta aos Romanos também condena a prática:
“Trocaram
a glória do Deus incorruptível por imagens do homem corruptível,
de aves, quadrúpedes e répteis. Por isto Deus os entregou, segundo
o desejo de seus corações, à impureza em que eles mesmos
desonraram seus corpos..., suas
mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a
natureza;
igualmente
os homens, deixando a relação natural com a mulher, arderam em
desejo uns para com os outros,
praticando torpezas homens com homens e recebendo em si mesmos a paga
da sua aberração". (Rm 1, 23-27).
Neste
texto, a heterossexualidade é considerada pelo autor como natural.
As relações homoafetivas seriam relações antinaturais, isso
porque, os autores compreendiam o sexo exclusivamente a partir das
genitálias e com finalidade procriadora. A compreensão da
sexualidade no século I a.C difere enormemente da era contemporânea.
Nesse quesito, os textos bíblicos não estão aptos para legislar
para os tempos modernos em termos de sexualidade.
Outros
textos neo-testamentários. 1 Timóteo 1, 9-10 considera que a
prática sodomita é
contrária à sã doutrina. E por último, em Judas 1, 7, mostra uma
referência indireta a Sodoma e é acompanhada de uma ameaça de fogo
eterno.
Ausência
nos Evangelhos de um posicionamento de Jesus
Diferentemente
das Cartas citadas anteriormente, os Evangelhos não se posicionam
sobre a homoafetividade. Jesus se depara com várias pessoas
condenadas pela Lei judaica como a mulher adúltera, como o publicano
pecador, mas não se depara com um homossexual. Porém, conforme sua
cultura Jesus entende o casamento entre um homem e uma mulher, ou
seja, monogâmico e heterossexual, em Mateus 19, 3-12.
Quando
Jesus inicia seu ministério ocorre uma série de encontro com
pessoas marginalizadas, aos poucos ele vai incluindo essas pessoas na
sociedade e combatendo o legalismo dos fariseus e dos mestres da Lei.
A Torah
proíbe várias práticas de natureza sexual e de outros temas que
deixavam as pessoas praticantes desses atos à margem da sociedade.
Na época de Jesus a obrigação de seguir a Torah
para um judeu estava acima da vida e de qualquer bem-estar pessoal.
O
pleno cumprimento da Torah proposto por Jesus (Mt 5, 17), apesar de
ressaltar que não é uma abolição da Torah, mas, fica claro que o
rabino Jesus dá uma nova interpretação à Torah. Em Mateus 5, há
uma oposição constante entre o que foi dito (antigos) e o que Jesus
diz (novos tempos). A série de mudanças culmina no apelo máximo à
misericórdia: “Amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam”
(Mt 5, 43-45). Se até aí ninguém não tinha entendido que a
mensagem de Jesus era de acolhida e de misericórdia, não há mais
dúvidas. Para discordar disso é só se colocando contra Jesus e
querendo estar à frente dele. Ou seja, 'um cristianismo apesar de
Jesus'.
Jesus
toma a opção de incluir os marginalizados, se opondo ao legalismo
das autoridades judaicas. Em muitas situações ele se opõe à
interpretação tradicional da Lei: A purificação do templo (Jo 2,
13-22), a colheita das espigas (Mt 12, 1-8), a mulher adúltera (Jo
8, 1-11), acolhida dos samaritanos (Jo 4, 1-26).
Mas
Jesus tem um discurso de condenação veemente, e sua perspectiva se
centra justamente nos grandes pecados em torno da preservação da
vida e do bem-estar da pessoa humana (Mt 25, 31-46). O texto do juízo
final enfatiza a condenação sobre a negação de direitos
fundamentais do ser humano como dar de comer, beber, vestir, hospedar
e visitar o próximo em suas necessidades. Portanto, os pecados
alistados como condenação máxima são relacionados a necessidades
vitais do ser humano.
Em
Mateus 10, 5-15, Jesus envia os discípulos a pregarem a proximidade
do Reino e a libertarem pessoas e avisa que quem não receber essa
mensagem de libertação será tratado com mais rigor do que Sodoma e
Gomorra. Se Sodoma é o símbolo do pecado homossexual, Jesus não
está muito apressado em condenar aquelas plessoas, antes de tudo,
ele profere uma ameaça a quem não recebesse essa mensagem de
libertação do ser humano. No versículo 15, ele diz: “Eu
digo a verdade: No dia do juízo haverá mais tolerância para Sodoma
e Gomorra do que para aquela cidade.”
Enfim,
a Palavra de Deus é para incluir o máximo pela misericórdia e
menos condenação. E por que as pessoas homoafetivas teriam de ser
condenadas? Se Jesus afirma para não julgar (Mt 7, 1), e para sermos
misericordiosos como Deus é (Lc 6, 36), por que temos de usar a
Bíblia para condenar e não aprendemos a lição de misericórdia
do mestre de Nazaré? Embora, lamentavelmente, muitos cristãos
pensam que acolher é ser conivente com qualquer situação moral,
isso porque ainda não entenderam a perspectiva de Jesus e se ele
aparecesse hoje, esses cristãos lhe dariam uma lição de moral. São
legalistas demais, isso, definitivamente é contra o Evangelho.
5.
A relativização dos textos bíblicos em termos de moral
Em
termos de moral não é possível harmonizar os textos bíblicos. Se
alguém no século XXI, seguisse a moral bíblica (entendida como uma
unidade) literalmente seria chamado de nazista. Ele teria de
discriminar e matar ladrões, homossexuais, adúlteras. Se o
princípio da moralidade for exclusivamente a literatura bíblica,
teremos problemas. Pois, essa literatura omite sobre muitas práticas
como pedofilia, uso de drogas ilícitas. Se alguém interpelar:
“Então, se não proíbe isso, logo é permitido.” O cristão
dirá: “Mas não é assim!”. Então, ele admite que não podemos
levar o texto ao pé da letra, mas separa aquilo que condena para
colocar sob a autoridade do texto que concorda com a sua mentalidade.
No fim, predomina uma leitura seletiva dos textos. De certa predomina
uma leitura seletiva mesmo, porém, ela não pode ser particularista.
6.
A desautorização
do teólogo que critica a interpretação literal
Um
cristão fundamentalista ao ler um artigo como esse terá as
seguintes reações: “Olha, quanto besteira”, “Ele não
respeita Deus”, “Sabe de nada”. Isso é coerente com a visão
que ele tem de mundo. Porque para ele a Bíblia é uma autoridade
absoluta, imediata e pronta. Não é necessário conhecimento da
cultura, história, geografia, línguas originais para entender a
Bíblia. Basta ler que o Espírito Santo dá as respostas prontas.
Ele sabe, mas ele ainda não admitiu e percebeu que milênios nos
separam da época em que os textos foram escritos. Portanto, se eu
não mergulhar na cultura, separar contextos, respeitar a diversidade
de gêneros literários, terei apenas um livro de receitas prontas
que se chocará com a mentalidade contemporânea. Sem cautela e muito
estudo crítico, não se faz um uso sensato da Bíblia. A misercórdia
deve ser, portanto, a chave de leitura das Escrituras, e não a
condenação.
Considerações
finais
A
acolhida das pessoas homoafetivas tem sua base no espírito
libertador dos Evangelhos. A moral judaica e dos autores das cartas
escandalizados pelo modo de viver greco-romano condenam, mas a
mensagem de Cristo harmoniza essas perspectivas e nos oferecem
elementos humanizadores para acolher a todos sem qualquer distinção.
Ou seja, os textos legislativos e de cunhos morais têm de ser
interpretados levando em conta a cultura da época em que foram
escritos.
REFERÊNCIAS