CRÍTICA SOBRE AS ABORDAGENS COMUNS DA LITERATURA BÍBLICA
José Aristides da Silva Gamito*
Neste artigo, proponho-me a discorrer sobre um assunto muito delicado para muita gente: Os limites do texto bíblico e os perigos das interpretações. Já passamos por fases mais racionais sobre a abordagem do texto bíblico, mas hoje crescem constantemente movimentos fundamentalistas cristãos. Eu fui educado como católico, mas atualmente tenho outra visão da Bíblia. As abordagens mais comuns da Bíblia pecam por parcialidade. Não é possível uma objetividade literária, mas precisamos nos distanciar um pouco do texto para deixá-lo respirar. Vamos lá!
1. Introdução
A fragmentação do cristianismo procede de vários fatores de divergências entre os cristãos, o principal deles parece ser a interpretação do texto bíblico. A Bíblia não é um livro de fácil interpretação. Primeiramente, não é um livro só! É uma coleção de livros de autores, gêneros, objetivos e épocas diferentes. Não existe uma unidade literária. A unidade que as pessoas enxergam é dogmática. A autenticidade destes textos é assegurada por dogmas como inspiração, inerrância, revelação. Tudo isso é historicamente difícil de ser resolvido. Encarcerar Deus em um livro pode ser muito perigoso! Portanto, é preciso uma crítica cuidadosa e rigorosa para abordar o texto bíblico.
A Bíblia é o livro mais manipulado da história. Ele é refém de muitas igrejas e movimentos. Como pode ser isso? Os católicos, ortodoxos e evangélicos consideram todo o conjunto dos livros como palavra de Deus a todo custo. Os ateus desconsideram tudo o que se diz na Bíblia. São abordagens radicais! Ninguém nascido na civilização ocidental, certamente, não conseguirá ter uma leitura imparcial da Bíblia.
As igrejas “históricas”[1] possuem uma crítica textual e uma teologia bíblica que consideram as limitações do texto, admitem o uso da racionalidade sobre ele. Mas isso não é suficiente! Há muitos assuntos que não são possíveis de serem resolvidos pela Bíblia. As igrejas que consideram a tradição recorrem a ela. Mas permanece um problema: Como interpretar a vontade de Deus para assuntos modernos e não tratados pela Bíblia? Neste caso, resta apenas a ética secular para pensar possíveis respostas.
A filosofia foi escrava da teologia para resolver o problema da falta de sistematização da Bíblia e também da resolução de problemas dogmáticos e morais não tratados pela Bíblia. A interpretação da Bíblia não é simples! Simplificar este problema é índice de irresponsabilidade.
2. Atributos fundamentais da Bíblia
Antes de qualquer abordagem do texto bíblico devemos considerar alguns atributos fundamentais: a) Antiguidade. b) Pluralidade. c) Descontinuidade. c) Ausência de intencionalidade sistemática. c) Desprovimento de dogmas. Vejamos essas características por parte. Todos esses atributos demonstram o nível de precaução que devemos ter antes de dogmatizar, de decidir uma interpretação bíblica.
2.1. Antiguidade
O texto bíblico é antigo. Isso quer dizer que foi escrito em época, tempo e cultura diferente da nossa. A língua, os costumes e a moral são outros. Não dá para aplicar literalmente todas as recomendações bíblicas aos costumes modernos. O leitor precisa de muitos conhecimentos interdisciplinares para dar qualquer interpretação conclusiva sobre a Bíblia. Além disso, a transmissão textual, as traduções, as diferentes “contaminações” do texto limitam uma interpretação segura. Portanto, não é fácil ler e entender a Bíblia.
2.2. Pluralidade
O texto bíblico é plural do ponto de vista das épocas, lugares, autores e objetivos. Cada texto pertence a diferentes contextos. E o texto possui ideias, interesses, intenções e formas diferentes. Não existe uma continuidade na Bíblia. A forma como conhecemos a Bíblia como um livro único é algo bastante moderno. As edições foram desenvolvidas pelos monges medievais, mas formatadas de modo mais definitivo a partir de Gutenberg. Os cânones são antigos, mas a consolidação desta visão de unicidade é recente e controversa, já que o cânone definido nos primeiros séculos foi contestado no século 16.
2.3. Descontinuidade
O texto bíblico é descontínuo. O Antigo Testamento é judaico. O Novo Testamento é cristão. A busca de unidade entre os dois testamentos e entre os livros entre si não é simples. Há descontinuidade de temas, de propósitos. Há repetições, contradições. Não é fácil harmonizar esta pluralidade de textos. O conceito de Deus, a moral, a religião institucional, tudo muda durante a leitura sequencial dos livros.
2.4. Ausência de intencionalidade sistemática
Não se pode deter da simples leitura do texto bíblico uma intencionalidade sistemática de todos os dogmas que sustentam o cristianismo. Este processo foi desenvolvido no período pós-bíblico, depois da consolidação do cristianismo. Qualquer tentativa de ver evidência desta intencionalidade já é fruto do dogmatismo sustentado pelas igrejas.
2.5. Desprovimento de dogmas
O texto possui mandamentos, decretos, leis, sermões, mas não existem continuidade, sistematização e unicidade. As recomendações variam de acordo com as épocas. Não existem dogmas objetivamente redigidos na Bíblia. São experiências e declarações de fé. As recomendações não são universais, formais e absolutas. A Bíblia é o resultado de diferentes experiências de fé, não é um tratado dogmático e moral.
3. Considerações finais
A discussão é muito mais do que foi apresentado neste texto. O propósito do texto foi mostrar algumas limitações históricas do texto bíblico. Não basta simplesmente citar versículos e achar que já provou ou resolveu uma questão. Não dá para ignorar a experiência dos teólogos que nos precederam, do esforço de tantas igrejas em épocas diferentes. Ignorar a história é fundamentalismo!
A Bíblia precisa ser considerada historicamente, podemos mais ou menos vislumbrá-la, porém nenhuma interpretação pode ser absoluta. A postura cristã maximiza sua importância. A postura ateísta minimiza sua importância. Não podemos negar a importância da leitura bíblica para entender a civilização ocidental. Enfim, as diversas abordagens do texto bíblico estão “contaminadas”, “viciadas” por fundamentalismos. Mas será que um dia poderemos enxergá-las como foram pensadas por seus diversos autores?
[1] O termo refere-se às igrejas que admitiram à racionalização da teologia como a Igreja Católica e as protestantes.
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