A IRREDUTIBILIDADE DO IMPERATIVO DOGMÁTICO “NÃO MATARÁS”
José Aristides da Silva Gamito*
Diante da notícia da autorização legal de abortar anencéfalos, retomo neste artigo uma discussão que travei com colegas nos tempos da minha graduação em filosofia. O assunto é justamente a distinção entre valores relativos e valores absolutos na ética. Apesar da tendência de universalidade, a ética sofre influência da historicidade. Muitos costumes, comportamentos e valores mudam com o tempo. Mas se chegarmos a relativizar tudo, o que realmente poderia ser afirmado como valor absoluto e irredutível na ética?
As pessoas de fé costumam afirmar “se Deus não existe, tudo é permitido”. A afirmação parte da tendência de sustentar os princípios morais na vontade de Deus. É uma forma de absolutização ética que não consideramos legítima. A ética é historicamente construída, não é revelada. A sua gênese parece se encontrar nos mecanismos de socialização. Seus princípios visam possibilitar a humanização do animal. Humanização esta que se dá na vida em sociedade. O homem, “animal político”, adota para a sua coexistência com os outros princípios orientadores que possibilitam a convivência entre as diferentes liberdades.
Em hipótese, uma pessoa poderia ignorar todas as regras, relativizar todos os valores. A sua liberdade permite. Porém, esta redução se esbarra em um limite que o imperativo dogmático “Não matarás” impõe. A morte é a negação de toda possibilidade de diálogo, é a desumanização do homem. É um princípio absoluto e proposto dogmaticamente na ética, por ser seu princípio fundador. Então, permitir a vida é o ponto de partida e de possibilidade de diálogo e construção de qualquer sistema ético.
Por isso, toda lei, todo valor, qualquer normatização pode se transformar com o tempo, menos os imperativos que regem o direito de viver. E o “Não matarás” possui muitos desdobramentos, inclusive, a proibição de não causar dor a outrem. A dor covardemente provocada é um ensaio para o homicídio. Este imperativo moral perpassa praticamente todos os sistemas morais e religiões do mundo.
Neste ponto, trazemos à discussão o pensamento do filósofo Emmanuel Lévinas. Segundo ele a referência ética não pode ser o eu, mas o outro. Antes de eu entrar em diálogo sobre qualquer valor ou ação no mundo preciso considerar a existência do outro, pois, eu sem o outro não sou alguém. Nenhuma pessoa poderia viver sozinha, afirmando de um modo absoluto e radical. Lévinas chega a afirmar que o rosto do outro traz uma ordem “Tu não matarás”.
Portanto, podemos relativizar e transformar valores, mas existe um limite que é o imperativo dogmático moral que proíbe matar. O assassinato é um ato de covardia, de negação do fundamento do diálogo, da proposição de valores e regras de convivência. Ninguém pode decidir pela morte do outro. O aborto é um dessas ações que ferem o fundamento da ética. Nem tudo é relativo, pois se assim fosse até mesmo a afirmação de que tudo é relativo seria um pressuposto relativo.
*Bacharel e licenciado em Filosofia e especialista em Docência do Ensino Básico e do Superior.
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